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quinta-feira, março 04, 2010

Mortes em derrapagem

FAUSTO NETO, Antônio. Mortes em derrapagem. Os casos Corona e Cazuza no discurso da comunicação de massa. Rio de Janeiro, Rio Fundo Ed., 1991. 240pág.

Neste livro, Fausto Neto se propõe a estudar dois casos principais sobre o tratamento dado pela mídia à morte decorrente da AIDS de dois artistas brasileiros famosos: Cazuza e Lauro Corona.
A morte é um significante que está permanentemente na mídia “segundo as embalagens próprias das hierarquias editoriais, que tratam de subordinar a morte singular do sujeito, no esquema padrão, à causa mortis do jornal. A conseqüência imediata se constitui no fato de subordinar este acontecimento, por assim dizer, absurdo, recusável, entrópico, (pág. 14) à inteligência dos próprios sistemas de enunciação mediáticos. É nessas circunstâncias que diferentes mortes comparecem, diariamente, nas diferentes páginas de jornais e nos espaços rádio-televisivos para, no interior de cada economia enunciativa, se converterem em objeto do engendramento da noção de realidade. Ricos, pobres, pessoas, indivíduos, “olimpianos” de diferentes matizes, funcionam como espécie de insumos da “economia discursiva” da comunicação, segundo as diferenças que caracterizam os múltiplos sistemas de operação. Cada sujeito é objeto — ao nível do discurso — de processos simbólicos singulares que, neste caso, tornam a particularizar a morte do corpo, é claro, mas de sujeitos sociais diferentes”. (pág. 15)

“A mídia sofre as ‘injunções’ da diferenciação social que marca os sujeitos na vida e na morte. Ao mesmo tempo que ela ‘espelha’ tais diferenciações, orquestrando rituais e poderes que tratam de agudizar a penúria das relações sociais, ela também cria suas hierarquias para tratar e, finalmente, construir a morte de seres humanos socialmente diferentes. Além de constituir a morte um dos eixos do discurso da atualidade, a mídia dá vigor às regras de funcionamento do simbólico social — onde o jornalista é apenas o instrumento — modelando o imprevisto ou o ‘anormal’ das regras que tratam de semantizar a morte de várias maneiras particulares” (pág.15).
“[…] Seria muito ingênuo que a desigualdade dos homens diante da vida não se traduzisse em desigualdade diante da morte. Alguns mortos inspiram comoção profunda, verdadeiros colapsos sociais; outros passam quase impercebidos, desprovidos de posteridade. Alguns permanecem nomeados e identificados, transformados em gênios, santos ou divindades (…). Outros se volatizam (…) Para cada morte particular estão socialmetne prescritas as emoções a sentir, os ritos a praticar, os mitos a evocar” .
Ele chama a atenção para os registros de morte nas diversas seções, edições, módulos e quadros presentes nos processos discursivos da comunicação de massa, que se apresentam como mortes dos ‘indivíduos’, ‘desconhecidos’ e das ‘pessoas’, reproduzindo o status que o morto goza em um sistema social (pág.15).
Destaca também o registro/construção da morte de certas figuras públicas, cuja vida real um pouco mítica, às quais ele denomina de “olimpianos”, heróis ou celebridades produzidos pela cultura de massa (pág.16).
“A partir da morte (antecedentes e conseqüentes) de um star, são mobilizadas operações discursivas, no sentido de descrever as estratégias de construção do acontecimento, bem como são destacadas técnicas que tratam de operacionalizar, em termos metodológicos, o funcionamento e os esclarecimentos advindos de uma pesquisa voltada para tal natureza” (pág.16).
O objetivo do trabalho é verificar como a mídia constrói a noção de morte de determinados segmentos dos ‘olimpianos’ brasileiros (atores de tv, políticos, etc.). O corpus é a imprensa cotidiana e revistas especializadas do setor (Amiga, Contigo, Semanário) (pág.17).
O autor trabalha com a hipótese de que “todo discurso se constrói à base de outro discurso e que todo discurso, embora pertencendo a um campo matricial distinto, tem conexões com outros campos matriciais discursivos” (p. 19). Pressupõe também que “o leitor com quem as revistas travam contato semanal é definido como um ‘pré-construído’, isto é, alguém que, por princípio é compreendido como aquele que se expõe, previamente, à programação de televisão e, conseqüentemente, que tem um saber prévio acerca daquilo que vem inserido em cada edição” (p. 19).
Vale destacar aqui que essa metodologia se diferencia da que utilizo nesta pesquisa pelo fato de que, embora Fausto Neto utilize jornais como uma espécie de contraste analítico para as revistas, o corpus que utilizo é apenas o das notícias da Folha de Pernambuco. Assim, o leitor da Folha não se encaixaria nessa categoria de pré-construído, pois o que é apresentado no jornal, não necessariamente foi apresentado nos noticiários locais de tv, não havendo aí nenhuma complementaridade entre o que é visto na tv e a notícia jornalística.
Fausto Neto afirma que vários estudos tratam da morte e das maneiras ‘onde a morte se esconde’. Coloca estes olimpianos como uma categoria especial de pessoas às quais não se supõe uma mortalidade e os “diversos sistemas de representação dos processos imaginários tratam, ao seu modo, de construir maneiras de se desviar desta questão” (p. 20).
Ele afirma também que, no caso que estuda, os sistemas de representações estão a serviço da recusa de quaisquer explicações para a morte, bordejando a questão nuclear, produzindo em seu lugar sistemas de operação, segundo economias discursivas múltiplas que tentam dar conta de outros ditos, em que também se incluem os sistemas de comunicação estudados.
Esses meios de comunicação precisam, ao mesmo tempo, do corpo do outro, para transformá-lo no objeto de sua realidade mercadológica. Sem esse outro não há processos de linguagem que sejam mobilizados para a construção das realidades.
Várias operações podem dar conta da tarefa de dissecar e esquadrinhar o corpo dos olimpianos. “Conhecimento de causas; produção de explicações, além da ‘veracidade empírica’ dos boletins médicos; designação de culpados; elogios e dramaticidade; cerimoniais e homenagens fúnebres; vinculação de aspectos a outros acontecimentos são operações que tratam de ir construindo estruturas simbólicas acerca da morte e dos processos que tratam de dar conta de sua recusa” (p. 21).
O autor vai, a partir daí examinar como o sistema de comunicação de massa constrói esse imaginário angustiante através de “modelos discursivos que tratam de fazer com que a morte derrape, aparecendo em seu lugar outros sistemas de inteligibilidade e outras nomeações” (p. 22).
Classificação e produção do real
[…]
Mortes em derrapagem
A análise propriamente dita começa quando o autor afirma que a vida e a morte dessas estrelas é o que preenche e fornece a possibilidade de sucesso tanto de meios impressos quanto audiovisuais e são, ao mesmo tempo, construída por eles. As estrelas são o que povoam as capas, manchetes principais, temas com estruturação seriada, identificadores de seções especializadas, edições temáticas e especiais etc. (p. 41). Elas são, como denomina Fausto Neto, estruturas-mercadorias da atividade de comunicação de massa. “Tais ‘mercadorias’ não se localizam apenas no suporte em si [a revista ou o jornal], ou nos conteúdos que eles veiculam, ao nível de representações sociais, mas na própria potencialidade que têm estes corpos importantes, no sentido de virem a ser objeto de identificação, projeção e imaginação do campo da recepção” (p. 41).
Chama a atenção para o peso que tem, no contexto brasileiro, um certo tipo de ‘publicação especializada’, que são construtoras do real, “elegendo a ficção em real”, tornando públicas emoções íntimas e a vida privada de celebridades, além de organizar o olhar dos consumidores de telenovelas quando antecipam o desenrolar dos capítulos posteriores (p. 42).
É assim que a vida das estrelas aparecem nestas publicações. Se antes a vida dos famosos passava pelo filtro de outras instâncias, como a família, hoje, esses filtros foram substituídos por outros rituais, que não têm como característica a de resguardar o sujeito, manter sua privacidade, mas de fazê-lo um espetáculo pela força do drama e da tragédia (p. 42).
Aqui o autor coloca seguidamente, em ordem cronológica, manchetes que trataram da saúde do ator Lauro Corona no ano de 1989.
Ele explica que tomando os títulos das revistas pretende dar conta apenas de como a mídia começa a estabelecer contato com o caso e, posteriormente, vai estruturando-o conforme suas leis próprias.
Uma dessas leis é a nomeação de um personagem central, o artista, que funciona como um localizador e um campo semântico que comanda o processo de hierarquização das páginas ou da capa. Outra é o caráter dramático que permeia os títulos [ele coloca os referentes lingüísticos que conotariam a dramaticidade]: mistério, pesadelo, drama, luta contra a morte, triste despedida, adeus, emoção e saudade (p. 43).
“Os títulos, não tendo nenhum dispositivo informativo, remetem para pressuposições e, ao mesmo tempo, para uma referenciação extra-texto cuja localização do objeto implica, como dissemos, no contato sistemático que o campo da recepção deve estar travando com este universo discursivo” (p. 44).
O autor chama então a atenção para os processos de semantização que este tipo de publicação utiliza para se reportar à AIDS. “Como bem se pode observar, ao nível das marcas lingüísticas, em nenhum título aparece a expressão, que certamente derrapa através de outros significantes (alergia, estresse, intoxicação, saúde, tratamento, drama, estado grave, luta contra a morte, triste despedida)” (p. 44).
Já nos títulos alguma coisa é ocultada através de metáforas e assim construindo um determinado discurso sobre o corpo. [Comparar aqui como os títulos da FPE realizam esse mesmo movimento: eles utilizam metáforas para tratar de algum assunto? Quais são os referentes lingüísticos utilizados em cada subdivisão de sofrimento social? Qual a relação de todos eles com as fotografias?] O discurso funciona na base do implícito, de um proibido, de um interdito [ver texto de Mauro sobre interdito], que é inibido por outras significações que não deixa vir à tona, ser inscrito na linguagem, a questão proibida da AIDS. “Os títulos, ao mesmo tempo em que constroem outros discursos, para não dar conta de outras representações, deixam comparecer, como efeito desta operação subtraidora, algo que ela possibilita como alusão: a morte social precedendo a morte física.” (p. 44). [No caso da FPE não existe a morte social anterior, mas a morte é presente, eternizada no próprio ato de fotografar, a morte é índice – Barthes].
Após a notícia da morte do ator nos diversos jornais, Fausto Neto pretende descrever como acontece o processo de ‘ganhar espaço’ nos suportes impressos.
“Uma vez que cada suporte trabalha com economias próprias, isso nos enseja argumentar […] em favor da não-existência de um fato em si, mas de uma multiplicidade de fatos tecidos na órbita discursiva de cada jornal. A despeito de uma morte (de um sujeito importante) ocorrida no leito de um hospital, nossa hipótese é que uma ‘multiplicidade de mortes’ se produz a partir daí, seja construída por campos de saberes diferentes seja por elementos de um mesmo campo de saber (a mídia). A morte física não corresponde à morte relatada em nível simbólico, na medida em que o falar sobre a primeira pressupõe construções e operações próprias a cada campo falante, que, detentor de regras próprias de maneiras de falar, trata, portanto, de fazer seu ‘recorte singular’ acerca daquilo que é objeto do seu discurso” (p. 45).
O autor toma o acontecimento como invariante, ou seja, textos jornalísticos que falam sobre uma mesma coisa e estuda as maneiras (enunciação) como um conjunto de jornais publicados no mesmo dia construíram a cobertura da morte do ator Lauro Corona. Tem como objetivo conhecer como o acontecimento é construído no conjunto de jornais, não se preocupando com a construção de sub-corpus (p. 45). Ver como isso se contrasta metodologicamente no meu caso. O corpus da pesquisa é de apenas um jornal, porém o assunto analisado se desdobra em diversos sub-corpus.
Construindo as primeiras noções
Primeiro Fausto Neto enumera os diferentes espaços onde, no jornal, está registrado o acontecimento, com hierarquias editoriais específicas, mostrando anexo, atrás do livro, a folha dos jornais onde apareceram as manchetes. Coloca em uma tabela com o jornal e os títulos enunciados. Faz comentários a respeito das diferenças de enunciado dos títulos (p. 46).
“O corpo e a morte de Corona rolam nos jornais: ‘na primeira página, onde é objeto de manchetes e chamadas; ocupam páginas chamadas locais, passam pela página dos chamados assuntos colunáveis, ‘contaminam’ as páginas entendidas por assuntos policiais; mas é, sobretudo, nos cadernos especiais, dedicados aos assuntos dos ‘olimpianos’, onde eles encontram melhor acolhida. Ali, eles viram o tema da espetacularização, na medida em que, a exemplo de outras formas de mercadorias, são submetidos às economias discursivas que tratam de bisbilhotar a vida do mundo dos stars” (p. 46).
No caso dos pobres, sua vida não tem interesse nem é objeto de espetáculo, mas na economia discursiva específica da Folha de Pernambuco seus corpos mortos têm um lugar de destaque. Sua vida sem interesse, prosaica, e muitas vezes monótona, é transmutada em uma morte espetacular, violenta e anônima, onde o texto escrito, que atesta este anonimato e falta de importância do sujeito, é contraposto às imagens chocantes, carnais e hiperbólicas que compõem um discurso imagético.
O quanto o sofrimento é mercadoria? O quanto está presente nas primeiras páginas? Quais as notícias que merecem a primeira página e se prolongam no interior do jornal? Como ele divide o espaço com outros assuntos, tais como artistas, esportes e mulheres semi-nuas? Como as notícias se articulam com as imagens? As imagens são meramente ilustrativas?
“De modo geral, à exceção da FSP, os jornais tratam de ilustrar o enunciado verbal […] usam o recurso fotográfico apenas como um dispositivo de decoração, sendo que o EM [Estado de Minas] anima a matéria com uma ilustração desenhada de Corona. Apenas O Dia e UH trazem ‘fotos’ do sepultamento nas quais se destacam, em primeiro plano, imagens dos pais do artista” (p. 47).
Os múltiplos acontecimentos
O autor faz uma análise dos títulos das notícias e os divide em indeterminados — com pouco ou nenhum especificador (por exemplo, “Aos 32 anos, morre Lauro Corona”; “Adeus emocionado a Lauro Corona”; “Proibiram ver Lauro Corona morto”).
Esses títulos são estruturas implícitas, cuja presença pressupõe um tipo de vínculo pré-construído entre o campo de leitura e o do discurso. Embora o nome do ator esteja presente e possa servir de localizador, isso não tem nenhuma serventia pois não se esclarece a causa de sua morte, pressupondo que o leitor já a conheça (p. 48).
Da ausência à construção de diagnósticos
A intenção do autor é examinar os diferentes procedimentos discursivos que os suportes utilizaram para a construção dos diagnósticos (p. 49). Examina primeiramente o material das primeiras páginas e em seguida o das páginas internas. Ele identifica unidades semânticas que perpassam o campo discursivo, no meu caso, o campo discursivo do sofrimento. Quais as construções discursivas que remetem ao sofrimento social? A morte é certamente uma delas, pois não é simplesmente uma morte proveniente de causas naturais, mas remetem na grande maioria das vezes a todos os tipos de violência existentes na sociedade.
Observar se os títulos são de caráter informativo ou se têm algum outro elemento. O jornal toma alguma posição frente ao fato? [ver análise da pág. 53].
Ao analisar o diagnóstico da morte do ator Lauro Corona, o autor constata a predominância do discurso indireto e indireto livre; comentário emitido pelo próprio jornal; construção de diagnósticos paralelos (p. 55).

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