"Ex libris" significa "dos livros de", é também uma vinheta que se cola nos livros com o nome do proprietário. O BITS, Grupo de Pesquisa Informação, Cultura e Práticas Sociais, é a vinheta sob a qual discutimos interesses diversos ligados às Ciências Humanas e realizamos nossas leituras sobre o mundo atual. Reforçamos aqui este caráter de buscador de conhecimentos, de reflexões sobre o mundo e a vida nessa sociedade digital.

sexta-feira, março 05, 2010

REFLEXÕES SOBRE AS CAUSAS DA LIBERDADE E DA OPRESSÃO SOCIAL

Este não é um fichamento. É o texto original, pois o livro já está esgotado, de Simone Weil, “Reflexões sobre as causas da liberdade e da opressão”, in A Condição Operária e outros estudos sobre a opressão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, pp. 235-307.

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“No que diz respeito ás coisas humanas, não rir, não chorar, não se indignar, mas compreender”. - ESPINOSA
“0 ser dotado de razão pode fazer de qualquer obstáculo uma matéria de seu trabalho e tirar partido dele.” - MARCO AURËLIO

O período atual é daqueles em que tudo o que normalmente parece constituir uma razão de viver, se desvanece; em que devemos, sob pena de afundarmos no desnorteamento ou na inconsciência, questionar tudo. O triunfo dos movimentos autoritários e nacionalistas arruína um pouco por toda a parte a esperança que a gente honesta tinha depositado na democracia e no pacifismo, isso é só uma parte do mal que nos acabrunha; ele é bem mais profundo e extenso. Podemos perguntar-nos se existe um canto da vida pública ou privada onde as próprias fontes da atividade e da esperança não estejam envenenadas pelas condições em que vivemos, O trabalho não é mais realizado com a consciência orgulhosa de ser útil, mas com o sentimento humilhante e angustiante de se possuir um privilégio concedido por um favor passageiro da sorte, um privilé-[fim da p.235]gio do qual excluímos vários seres humanos porque o desfrutamos, em resumo: um lugar. Os próprios chefes de empresa perderam aquela crença ingênua num progresso econômico ilimitado que lhes dava a ilusão de terem uma missão. O progresso técnico parece ter ido à falência, porque em vez do bem-estar só trouxe às massas essa miséria física e moral onde as vemos se debater; além disso, as inovações técnicas não entram em mais nenhum lugar, ou quase, a não ser nas indústrias de guerra. Quanto ao progresso científico, não se entende para que serve empilhar ainda mais conhecimentos sobre um acúmulo já tão excessivo, que nem o pensamento dos especialistas pode abarcar; e a experiência mostra que nossos avós se enganaram acreditando na difusão das luzes, já que só podemos divulgar para as massas uma miserável caricatura da cultura científica moderna, caricatura que, em vez de formar o pensamento, as acostuma à credulidade. A própria arte sofre o golpe do desnorteamento geral, que, em parte, a priva de seu público, o que detém a inspiração. Finalmente a vida familiar é toda ansiedade desde o momento em que a sociedade se fechou para os jovens. Essa geração para a qual a espera febril do futuro é a vida integral, vegeta no mundo inteiro com a consciência de não ter nenhum futuro. Mal este que, de mais a mais, se é mais agudo para os jovens, é comum para toda a humanidade de hoje. Vivemos uma época privada de futuro. A espera do que virá não é mais esperança, mas angustia.
No entanto, desde 1789, há uma palavra mágica que contém em si todos os futuros imagináveis e que nunca esteve tão impregnada de esperança como nas situações desesperadas; é a palavra revolução. Eis por que a pronunciam tantas vezes de alguns tempos para cá. Deveríamos estar, ao que parece, em pleno período revolucionário; mas, de fato, tudo se passa como se o movimento revolucionário caísse em decadência com esse mesmo regime que pretende destruir. Há mais de um século cada geração de revolucionários vem, sucessivamente, nutrindo uma esperança na próxima revolução; hoje esta esperança perdeu tudo o que lhe teria podido servir de suporte. Nem do regime saído da Revolução de Outubro, nem das duas Internacionais, nem nos partidos socialistas ou comunistas independentes, nem nos sindicatos, nem nas organizações anarquistas, nem nos pequenos agrupamentos de jovens que surgiram tão numerosos de alguns tempos para cá, se pode encontrar seja o que for de vigoroso, são ou puro; há muito tempo que a classe operária não dá nenhum sinal dessa espontaneidade com que contava Rosa Luxemburgo, e que, aliás, nunca se manifestou senão para ser imediatamente afogada em sangue; as classes médias só se seduzem [fim da p. 236] pela revolução quando evocada com fins demagógicos por aprendizes de ditador. Muitas vezes se repete que a situação é objetivamente revolucionária, e que só o “fator subjetivo” é que faz falta; como se a carência total da própria força, da única que poderia transformar o regime, não fosse um caráter objetivo da situação atual, cujas raízes seria preciso procurar na estrutura da nossa sociedade! Eis por que o primeiro dever que o presente período nos impõe é o de ter bastante coragem intelectual para nos perguntarmos se a palavra revolução, simplesmente, não passa de uma dessas inúmeras mentiras que o regime capitalista suscitou quando se implantou e que a crise atual nos presta o serviço de dissolver. Esta pergunta parece sacrílega, por causa de toda a gente nobre e pura que sacrificou tudo, inclusive a vida, por esta palavra. Mas só os sacerdotes podem medir o valor de uma idéia pela quantidade de sangue que ela fez derramar. Quem sabe se os revolucionários não derramaram seu sangue tão em vão quanto aqueles gregos e troianos do poeta que, iludidos por uma falsa aparência, lutaram dez anos pela sombra de Helena?
Crítica do marxismo
Até hoje todos os que sentiram a necessidade de ostentar seus sentimentos revolucionários com conceitos precisos acharam, ou pensaram achar, esses conceitos em Marx. Ficou estabelecido para sempre que Marx, graças à sua teoria geral da História e à sua análise da sociedade burguesa, demonstrou a necessidade iniludível de uma próxima revirada, na qual seria abolida a opressão que o regime capitalista nos fez padecer; tão grande é a persuasão que, em geral, um exame mais apurado da demonstração é dispensado. O “socialismo científico” passou para o estado de dogma, exatamente como passaram todos os resultados obtidos pela ciência moderna, resultados nos quais cada um pensa que tem o dever de crer sem nunca sonhar em informar-se a respeito do método. Quanto a Marx, se realmente procurarmos assimilar de verdade a sua demonstração, veremos logo que ela comporta muito mais dificuldades do que deixam supor os propagandistas do “Socialismo científico”.
Na verdade, Marx demonstra admiravelmente o mecanismo da opressão capitalista; mas tão bem o demonstra, que o difícil é imaginar como esse mecanismo poderia parar de funcionar. Habitualmente só fica dessa opressão a análise do aspecto econômico, isto é, a extorsão da mais valia; se nos ativermos a esse ponto de vis-[fim da p. 237]ta, é certamente fácil explicar às massas que esta extorsão está ligada à concorrência, a qual está ligada à propriedade privada, e que, no dia em que a propriedade se tornar coletiva, tudo irá bem. No entanto, mesmo nos limites desse raciocínio simples em aparência, a um exame atento surgem mil dificuldades. Pois Marx mostrou bem que a verdadeira razão da exploração dos trabalhadores não é o desejo que os capitalistas teriam, de gozar e de consumir, mas a necessidade de aumentar a empresa o mais depressa possível para que ela se torne mais poderosa do que as suas concorrentes. Ora, não é apenas a empresa, mas qualquer espécie de coletividade trabalhadora, seja ela qual for, que precisa restringir ao máximo o consumo de seus membros para empregar o maior tempo possível na construção de armas contra as coletividades rivais; deforma que enquanto houver na superfície do globo uma luta pelo poder, e enquanto o fator decisivo da vitória for a produção industrial, os operários serão explorados. Para dizer a verdade, Marx supunha precisamente, sem, aliás, demonstrá-lo, que toda espécie de luta pelo poder desapareceria no dia em que o socialismo se estabelecesse em todos os países industriais; o azar é que, como o próprio Marx reconheceu, a revolução não pode ser feita em todos os lugares ao mesmo tempo; e quando ela se faz num pais, não suprime para esse país, mas, ao contrário, acentua — a necessidade de explorar e de oprimir as massas trabalhadoras, com medo de ele se tornar mais fraco do que as outras nações. Disso é que a história da revolução russa constitui uma dolorosa ilustração.
Se considerarmos outros aspectos da opressão capitalista, surgirão outras dificuldades, mais temíveis ainda, ou, falando melhor, a mesma dificuldade sob uma luz mais crua. A força que a burguesia possui para explorar e oprimir os operários está nos próprios fundamentos de nossa vida social, e não pode ser anulada por nenhuma transformação política e jurídica. Essa força é, inicial e essencialmente, o próprio regime da produção moderna, isto é,a grande indústria. A esse respeito abundam em Marx as fórmulas vigorosas sobre a escravização do trabalho vivo pelo trabalho morto, “a inversão da relação entre o objeto e o sujeito”, a “subordinação do trabalhador às condições materiais do trabalho”. “Dentro da fábrica”, escreve em O Capital, “existe um mecanismo independente dos trabalhadores e que os incorpora a si como engrenagens vivas... A separação entre as forças espirituais que intervêm na produção e o trabalho manual, e a transformação das primeiras em força do capital sobre o trabalho acham o seu cumprimento na grande indústria fundada no maquinismo. O detalhe do destino in-[fim da p. 238]dividual do operário na máquina desaparece como um nada ante a ciência, as formidáveis forças naturais e o trabalho coletivo que estão incorporados ao conjunto das máquinas e que, com elas, são o poder do patrão.” Assim, a completa subordinação do operário à empresa e àqueles que a dirigem radica na estrutura da fábrica e não no regime de propriedade. Também, “a separação entre as forças espirituais que intervêm na produção e o trabalho manual”, ou, conforme uma outra fórmula, “a degradante divisão do trabalho em trabalho manual e trabalho intelectual” é a base da nossa cultura, que é uma cultura de especialistas. A ciência é um monopólio, não por causa da má organização da instrução pública, mas por sua própria natureza; os profanos só têm acesso aos resultados, aos métodos não, isto é, eles só podem crer e não assimilar. O “socialismo científico”, até ele, ficou como o monopólio de alguns, e os “intelectuais” têm infelizmente os mesmos privilégios no movimento operário que na sociedade burguesa. O mesmo acontece ainda no plano político.Marx havia percebido claramente que a opressão do Estado repousa na aparelhagem governamental, aparelhos de governo permanentes e destacados da população, a saber, as aparelhagens burocrática, militar e policial; mas estes aparelhos permanentes são o efeito inevitável da distinção radical que existe, de fato, entre as funções de direção e as funções de execução. Ainda neste ponto, o movimento operário reproduz integralmente os vícios da sociedade burguesa. Em todos os planos o embate é contra o mesmo obstáculo. Toda a nossa civilização está fundada na especialização, a qual implica a escravização dos que executam pelos que coordenam; e sobre tal base só se pode organizar e aperfeiçoar a opressão, mas não aliviá-la. Isso não significa que a sociedade capitalista tenha elaborado em seu seio as condições materiais de um regime de liberdade e de igualdade, pois a instauração de um regime como esse supõe uma transformação prévia da produção e da cultura.
No entanto, só se pode compreender que Marx e seus discípulos tenham podido acreditar na possibilidade de uma democracia efetiva nas bases da civilização atual, se considerarmos a sua teoria do desenvolvimento das forças produtivas. Sabe-se que, segundo Marx, este desenvolvimento constitui, em última análise, o verdadeiro motor da história, e que ele é quase ilimitado. Cada regime social, cada classe dominante tem como “tarefa”, como “missão histórica”, levar as forças produtoras a um grau continuamente mais alto, até o dia em que todo e qualquer progresso futuro venha a ser estancado pelos quadros sociais; nesse momento as forças pro-[fim da p. 239]dutoras se revoltam, rompem com esses quadros, e uma nova classe toma o poder. Constatar que o regime capitalista esmaga milhões de homens só acarreta uma condenação moral; o que constitui a condenação histórica do regime é que, depois de ter tornado possível o progresso da produção, agora ele o impede. A tarefa das revoluções consiste essencialmente na emancipação, não dos homens, mas das forças produtoras. Para falar a verdades é claro que, desde que estas tenham atingido um desenvolvimento suficiente para que a produção possa se realizar com um pequeno esforço, as duas tarefas coincidem; e Marx supunha que esse é o caso da nossa época. Esta suposição é que lhe permitiu estabelecer um acordo indispensável para a sua tranqüilidade moral entre as suas aspirações idealistas e o seu conceito materialista da história. Segundo ele, a técnica atual, uma vez liberada das formas capitalistas da economia, pode dar aos homens, desde agora, lazer suficiente que lhes permita um desenvolvimento harmonioso das faculdades e, conseqüentemente, fazer desaparecer, até a um certo ponto, a especialização degradante estabelecida pelo capitalismo; e, sobretudo, o desenvolvimento posterior da técnica deverá aliviar ainda mais, de dia a dia, o peso da necessidade material, e, por uma conseqüência imediata, o da pressão social, até que a humanidade atinja afinal um estado paradisíaco, por assim dizer, no qual a mais abundante das produções custaria um esforço insignificante, no qual a antiga maldição do trabalho seria abolida, em suma, no qual se encontraria a felicidade de Adão e Eva antes do pecado. Compreende-se bem, a partir desse conceito, a posição dos bolcheviques, e por que todos, inclusive Trotsky, falam das idéias democráticas com um soberano desprezo. Não puderam realizar a democracia operária prevista por Marx; mas não se perturbam por tão pouca coisa, convencidos como estão, por um lado, de que toda tentativa de ação social que não consista em desenvolver as forças produtivas está destinada por antecipação ao fracasso, e, por outro lado, de que todo progresso das forças produtivas faz a humanidade progredir no caminho da liberação, mesmo que seja ao preço de uma opressão provisória. Com uma tal segurança moral não é de surpreender que tenham espantado o mundo com a sua força.
No entanto, é raro que as crenças reconfortantes sejam ao mesmo tempo razoáveis. Antes mesmo de examinar a concepção marxista das forças produtivas, impressiona o caráter mitológico que ela apresenta em toda a literatura socialista, onde é admitida como um postulado. Marx nunca explica por que as forças produtivas tenderiam a crescer; admitindo, sem prova, essa misteriosa tendên-[fim da p. 240]cia, ele se aproxima, não de Darwin, como gostava de pensar, mas de Lamarque, que também fundava todo o seu sistema biológico numa tendência inexplicável dos seres vivos para a adaptação. Também, por que será que, quando as instituições sociais se opõem ao desenvolvimento das forças produtivas, a vitória deveria caber antes a estas do que àquelas? Marx não supõe, evidentemente, que os homens transformem conscientemente seu estado social para melhorar sua situação econômica; ele sabe muito bem que até os nossos dias as transformações sociais nunca foram acompanhadas por uma consciência clara de seu real alcance; portanto, admite implicitamente que as forças produtoras possuem uma virtude secreta que lhes permite ultrapassar os obstáculos. Enfim, por que ele coloca sem demonstração, e como verdade evidente, que as forças produtoras são suscetíveis de um desenvolvimento ilimitado? Toda esta doutrina, sobre a qual se edifica inteiramente a concepção marxista da revolução, está absolutamente desprovida de caráter científico. Para compreendê-la, é preciso lembrar as origens hegelianas do pensamento marxista. Hegel acreditava num espírito escondido agindo no universo, e que a história do mundo é simplesmente a história desse espírito no mundo, o qual, como tudo o que é espiritual, tende indefinidamente para a perfeição. Marx pretendeu “inverter” a dialética hegeliana, que ele acusava de andar “de cabeça para baixo”; substitui o espírito pela matéria, como força motriz da história; mas, por um extraordinário paradoxo, concebeu a história a partir dessa retificação, atribuindo à matéria o que é a própria essência do espírito: uma contínua tendência para a perfeição. Aliás, assim, ele concordava intimamente com a corrente geral do pensamento capitalista; transferir o princípio do progresso do espírito para as coisas é dar uma expressão filosófica a esta “subversão da relação entre o sujeito e o objeto”, onde Marx via a própria essência do capitalismo. O impulso da grande indústria fez das forças produtoras a divindade de uma espécie de religião, cuja influência Marx sofreu inconscientemente, ao elaborar o seu conceito de história. A palavra religião pode surpreender quando se trata de Marx; mas acreditar que a nossa vontade converge para uma vontade misteriosa que estaria agindo no mundo e nos ajudaria a vencer, é pensar religiosamente, é acreditar na Providência. Aliás, o próprio vocabulário de Marx testemunha isso, pois contém expressões quase místicas, como “a missão histórica do proletariado”. Essa religião das forças produtivas, em nome da qual gerações de chefes de empresa esmagaram as massas trabalhadoras sem o menor remorso, constitui igualmente um fator de opressão no interior do movimento socialista; todas as religiões fazem do homem [fim da p. 241] um simples instrumento da Providência, e o socialismo também coloca os homens a serviço do progresso histórico, ou seja, do progresso da produção. Por isso, seja qual for a ofensa infligida à memória de Marx pelo culto que lhe dedicam os opressores da Rússia moderna, não é uma ofensa totalmente desmerecida. Marx, é verdade, nunca teve outro impulso motor a não ser uma generosa aspiração de liberdade e de igualdade; só que esta aspiração, separada da religião materialista com a qual se confundia em sua mente, pertence exclusivamente àquilo que Marx chamava desdenhosamente de socialismo utópico. Se a obra de Marx não tivesse nada de mais precioso, poderia ser esquecida sem inconveniente, com exceção, pelo menos das análises econômicas.
Mas não se trata disso; em Marx achamos um outro conceito, sem ser este hegelianismo às avessas, isto é, um materialismo que não tem mais nada de religioso, e que constitui, não uma doutrina, mas um método de conhecimento e de ação. Não é raro vermos assim, em grandes espíritos, duas concepções distintas e até mesmo incompatíveis confundindo-se graças à inevitável imprecisão da linguagem; absorvidos pela elaboração de novas idéias, falta-lhes tempo para o exame critico do que descobriram. A grande idéia de Marx é que na sociedade, assim como na natureza, nada se realiza senão por meio de transformações materiais. “Os homens fazem sua própria história, mas em condições determinadas”. Desejar não é nada, é preciso conhecer as condições materiais que determinam nossas possibilidades de ação; e no domínio social estas condições são definidas pela maneira por que o homem obedece às necessidades materiais provendo às suas próprias necessidades, em outras palavras, pelo modo de produção. Melhorar metodicamente a organização social supõe que seja feito um estudo prévio, aprofundado, do modo de produção, para procurar saber, por um lado, o que se pode esperar disso, no futuro imediato e longínquo, do ponto de vista do rendimento, e, por outro lado, que formas de organização social e de cultura são compatíveis com ele, e, por fim, como ele próprio pode ser transformado. Só gente irresponsável pode negligenciar um estudo como esse e pretender, no entanto, reger a sociedade; e, por infelicidade, esse é o caso por toda a parte, tanto nos’ meios revolucionários quanto nos oficiais. O método materialista, esse instrumento que Marx nos legou, é um instrumento virgem; nenhum marxista se serviu realmente dele, a começar pelo próprio Marx. A única idéia realmente preciosa que está na obra de Marx é também a única que foi completamente negligenciada. Não é de estranhar que os movimentos sociais saídos de Marx tenham fracassado. [fim da p. 242]
A primeira pergunta que surge é sobre o rendimento do trabalho. Teremos motivos para supor que a técnica moderna, no nível em que está, seja capaz, no caso de uma repartição de bens eqüitativa, de garantir a todos o bem-estar suficiente e o lazer para que o desenvolvimento do indivíduo deixe de ser entravado pelas condições modernas do trabalho? Parece que há a este respeito muitas ilusões, sabiamente sustentadas pela demagogia. Não são os lucros que é preciso calcular; os lucros que são reinvestidos na produção seriam, no conjunto, tirados dos trabalhadores debaixo de todos os regimes. Seria preciso poder fazer a soma de todos os trabalhos de que nos poderíamos dispensar em troca de uma transformação do regime da propriedade. E ainda o problema não estaria resolvido com isso; é preciso levar em consideração trabalhos que suporiam a reorganização completa do aparelho de produção, reorganização necessária para que a produção se adaptasse a seu novo fim, isto é, o bem-estar das massas; não se deve esquecer que a fabricação de armas não seria abandonada antes que se destruísse o regime capitalista em todos os lugares; principalmente é preciso prever que a destruição do lucro individual, fazendo desaparecer certas formas de esbanjamento, necessariamente suscitaria outras. Cálculos precisos são evidentemente impossíveis de estabelecer; mas não são indispensáveis para percebermos que a supressão da propriedade privada estaria longe de bastar para impedir que o trabalho das minas e das fábricas continuasse a pesar como uma escravização sobre os que lá estão.
Mas, se o estado atual da técnica não basta para libertar os trabalhadores, pelo menos se pode razoavelmente esperar que ela seja destinada a um desenvolvimento ilimitado que implicaria um aumento ilimitado do rendimento do trabalho? Ë o que todo mundo admite, entre os capitalistas assim como entre os socialistas, e sem o menor estudo prévio da questão; basta que o rendimento do esforço humano tenha aumentado de uma forma inaudita desde há três séculos para que se espere que este crescimento prossiga no mesmo ritmo. Nossa cultura, por assim dizer, científica, nos deu este hábito funesto de generalizar, de extrapolar arbitrariamente em vez de estudar as condições de um fenômeno e os limites que elas implicam; e Marx, a quem seu método dialético devia preservar desse erro, caiu como os outros nesse ponto.
O problema é capital, e de natureza a determinar todas as nossas posições; é preciso formulá-lo com a maior precisão. Para isso, importa saber, em primeiro lugar, em que consiste o progresso técnico, que fatores intervêm, e examinar separadamente cada fator; [fim da p. 243] pois, sob o nome de progresso técnico, confundem-se processos inteiramente diferentes, que oferecem possibilidades de desenvolvimento diversos. O primeiro processo que se oferece ao homem para produzir mais, com um esforço mínimo, é a utilização das fontes naturais de energia; e é verdade, num sentido, que não se pode prever para os benefícios deste processo um limite preciso, porque se ignoram que novas energias um dia poderão ser utilizadas; mas isso não quer dizer que possa haver neste rumo perspectivas de progresso indefinido, nem que o progresso nesse setor esteja, de uma forma geral, assegurado. Pois a natureza não nos dá essa energia, seja qual for a forma por que se apresente, força animal, hulha ou petróleo; é preciso arrancá-la, transformá-la com o nosso trabalho para adaptá-la aos nossos próprios fins. Ora, esse trabalho não se torna necessariamente menor à medida que o tempo passa; atualmente a mesmo o contrário que vemos acontecendo, pois a extração da hulha e do petróleo se torna sempre e automaticamente menos frutífera e mais cara. Mais ainda, as jazidas atualmente conhecidas estão destinadas a se esgotarem ao fim de um tempo relativamente curto. Podem-se encontrar novas jazidas; mas a descoberta, a instalação de novas explorações, algumas das quais sem dúvida fracassarão, tudo isso será custoso; demais a mais, não sabemos quantas jazidas desconhecidas existem, de uma forma geral, e, seja como for, nunca a sua quantidade será ilimitada. Pode-se, também, e acontecerá sem dúvida um dia, encontrar novas fontes de energia; só que nada garante que a utilização vá exigir menos trabalho de que o emprego da hulha ou das hulhas pesadas; o contrário também é possível. Pode mesmo acontecer, suponhamos, que a utilização de uma fonte de energia natural custe um trabalho superior aos esforços humanos que pretendemos substituir. Nesse terreno é o acaso que decide; pois a descoberta de uma fonte de energia nova e facilmente acessível, ou de um processo econômico de transformação para uma fonte de energia conhecida, não é dessas coisas às quais se tenha a certeza de chegar sob condição de se refletir com método e com tempo. Enganamo-nos a este respeito porque temos o costume de considerar por fora e em bloco o desenvolvimento da ciência; não notamos que, se certos resultados científicos dependem unicamente do bom emprego que o sábio faz da sua razão, outros têm por condição descobertas felizes. Ë o caso da utilização das forças da natureza. É claro que toda fonte de energia, com certeza pode ser transformada; mas o sábio tem tanta certeza de encontrar no decorrer de suas pesquisas algo economicamente vantajoso, quanto o explorador de chegar a um território fértil. Exemplo ilustrativo disso encontramos nas famosas experiências sobre a energia térmica dos mares, em tor-[fim da p. 244] no das quais se fez tanto barulho, e tão em vão. Ora, assim que o acaso entra em jogo, a noção de progresso contínuo deixa de ser aplicável. Por isso, esperar que o desenvolvimento da ciência traga algum dia, de uma forma, por assim dizer, automática, o descobrimento de uma fonte de energia utilizável de maneira quase imediata para todas as necessidades humanas, é sonhar. Não se pode demonstrar que seja impossível; e para falar a verdade, também é possível que um belo dia alguma transformação súbita da ordem astronômica conceda a vastas extensões do globo terrestre o clima encantador que permite, dizem, que certos povos primitivos vivam sem trabalho; mas as possibilidades dessa ordem não devem nunca entrar em consideração. No conjunto, não seria razoável pretender determinar desde já o que o futuro reserva ao gênero humano neste sentido.
Aliás, não existe senão um outro recurso que permita reduzir a soma do esforço humano, a saber, o que se pode chamar, usando uma expressão moderna, de racionalização do trabalho. Pode-se destacar dois aspectos, um, que diz respeito à relação entre os esforços simultâneos, e outro, à relação entre os esforços sucessivos; em ambos os casos o progresso consiste em aumentar o rendimento dos esforços pela maneira de combiná-los. É claro que neste setor se pode, rigorosamente, fazer abstração dos acasos, e que a noção de progresso tem aí um sentido; a questão é saber se esse progresso é ilimitado, e, em caso contrário, se ainda estamos longe do limite. No que diz respeito ao que se pode chamar de racionalização do trabalho no espaço, os fatores de economia são a concentração, a divisão e a coordenação dos trabalhos. A concentração do trabalho implica a diminuição de todas as espécies de gastos que podemos reunir sob o nome de gastos gerais, entre os quais os gastos com a instalação local, os transportes, e, em certos casos, a ferramenta. Agora, a divisão do trabalho tem efeitos muito mais espantosos. Ora permite obter uma rapidez considerável na execução de obras que trabalhadores isolados também poderiam executar igualmente bem, mas muito mais lentamente, e isso porque cada um deveria fazer por sua conta o esforço de coordenação que a organização do trabalho permite que um homem só assuma, no lugar de muitos outros; a célebre análise de Adam Smith sobre a fabricação de alfinetes fornece um exemplo disso. Ora, e é o que mais importa, a divisão e a coordenação dos esforços torna possíveis obras colossais que ultrapassariam infinitamente as possibilidades de um homem só. Ë preciso levar em consideração também economias que a especialização por regiões permite no que diz respeito aos transportes de energia e de matéria-prima, e, sem dúvida, muitas outras econo-[fim da p. 245]mias que se levaria muito tempo para se procurar agora. Seja como for, basta olhar para o atual regime da produção e fica bem claro não somente que esses fatores de economia comportam um limite além do qual se tornam fatores de gasto, como também que esse limite está atingido e ultrapassado. Há vários anos que o crescimento das empresas é seguido, não por uma diminuição, mas por um aumento dos gastos gerais; o funcionamento da empresa, tornado complexo demais para permitir um controle eficaz, deixa uma margem cada vez maior para o desperdício e suscita uma extensão parasitária do pessoal ligado à coordenação das diversas partes da empresa. Também a extensão das trocas, que outrora teve um papel formidável como fator de progresso econômico, passa a causar mais gastos, maiores do que os que ela evita, porque as mercadorias ficam por muito tempo improdutivas, porque o pessoal ligado às trocas também cresce num ritmo acelerado e porque os transportes consomem uma energia gradativamente crescente em virtude das inovações destinadas a aumentar a velocidade, inovações forçosa-mente sempre mais custosas e menos eficazes à medida que se sucedem. Assim, sob todos os aspectos, o progresso hoje se transforma de uma maneira, propriamente falando, matemática, em regressão.
O progresso devido à coordenação dos esforços no tempo é sem dúvida o fator mais importante do progresso técnico; é também o mais difícil de analisar. Desde Marx se costuma designá-lo falando da substituição do trabalho morto pelo trabalho vivo, fórmula de uma temível imprecisão; nesse sentido ela evoca a imagem de uma evolução contínua para uma etapa da técnica na qual, se podemos falar assim, todos os trabalhos por fazer já estariam feitos. Esta imagem é tão quimérica quanto a de uma fonte natural de energia que fosse tão imediatamente acessível ao homem quanto a sua própria força vital. A substituição de que se trata, coloca, simplesmente, no lugar dos movimentos que permitiriam obter diretamente certos resultados, outros movimentos que produzem esse resultado indiretamente graças à disposição consignada às coisas inertes; é sempre confiar à matéria o que parecia ser o papel do esforço humano, mas, em vez de utilizar a energia de certos fenômenos naturais, utiliza-se a resistência, a solidez, a dureza de certos materiais. Num como noutro caso, as propriedades da matéria cega e indiferente só podem ser adaptadas aos fins humanos pelo trabalho humano; e num caso como no outro, a razão proíbe admitir antecipadamente que esse trabalho de adaptação deva necessariamente ser inferior ao esforço que os homens deveriam fornecer para atingir diretamente o fim que têm em vista. Temos, então, que a uti-[fim da p. 246] lização das fontes de energia depende, por um lado considerável, de encontros imprevisíveis, e que a utilização de materiais inertes e resistentes se efetuou no conjunto dentro de uma progressão continua que podemos abarcar e prolongar com o pensamento, desde que se consiga perceber o principio. A primeira etapa, velha como a humanidade, consiste em confiar a objetos colocados em lugares convenientes todos os esforços de resistência que têm por finalidade impedir certos movimentos da parte de certas coisas. A segunda etapa define o maquinismo propriamente dito; o maquinismo tornou-se possível no dia em que perceberam que se podia, não só utilizar a matéria inerte para garantir a imobilidade onde fosse preciso, mas ainda encarregá-la de conservar as relações permanentes dos movimentos entre si, relações que até então tinham de ser estabelecidas pelo pensamento cada qual por sua vez. Para esse fim, é preciso, e basta, que se tenha podido inscrever essas relações, transportando-as para as formas impressas na matéria sólida. Foi assim que um dos primeiros progressos a abrir caminho para o maquinismo consistiu em dispensar o tecelão de adaptar a escolha dos fios a puxar sobre seu tear segundo o desenho da fazenda, dando-lhe um cartão furado cujos buracos correspondem ao desenho. Se não é possível obter transposições dessa ordem nas diversas espécies de trabalho senão pouco a pouco e graças a invenções aparentemente oriundas da inspiração ou do acaso, é porque o trabalho manual combina os elementos permanentes que ele contém de modo a dissimulá-los, a maioria das vezes sob uma aparência de variedade; por isso o trabalho parcial das manufaturas teve de preceder à grande indústria. Finalmente, a terceira e última etapa corresponde à técnica automática, que acaba de aparecer; o princípio dela está na possibilidade de confiar à máquina não apenas uma operação sempre idêntica a si mesma, mas também um conjunto de operações variadas. Esse conjunto pode ser tão vasto, tão complexo quanto se quiser; basta apenas que se trate de uma variedade definida e previamente limitada. A técnica automática que está ainda num estado, por assim dizer, primitivo, pode, portanto, teoricamente, desenvolver-se indefinidamente; e a utilização dessa técnica para satisfazer às necessidades humanas não comporta outros limites, a não ser os que a parte do imprevisto impõe nas condições da existência humana. Se se pudessem imaginar condições de vida que não comportassem, de forma alguma, o menor imprevisto, o mito americano do robô teria um sentido, e a supressão completa do trabalho humano por um arranjo sistemático do mundo seria possível. Isso não é verdade e essas coisas não passam de ficções; essas ficções, ainda valeria a pena elaborá-las a título de limite ideal, se os homens tivessem [fim da p. 247] pelo menos o poder de reduzir progressivamente, por qualquer método, esta parte do imprevisto em suas vidas. Mas, também, não é o caso, e nunca, técnica nenhuma dispensará os homens de renovar e de adaptar continuamente, com o suor de seu rosto, a ferramenta de que se servem.
Nessas condições, é fácil imaginar que um certo grau de automatismo possa ser mais caro em esforços humanos do que um grau menos elevado. Pelo menos é fácil de conceber abstratamente; é quase impossível chegar, neste assunto, a uma apreciação concreta, por causa do grande número de fatores que seria preciso incluir na contagem. A extração dos metais de que são feitas as máquinas só pode ser feita com trabalho humano; e, como se trata de minas, o trabalho se torna cada vez mais penoso à medida que se efetua, sem contar que as jazidas conhecidas correm o risco de se esgotarem de uma forma relativamente rápida; os homens se reproduzem, o ferro não. Também não se deve esquecer, embora isso não venha registrado nos relatórios financeiros e estatísticas dos economistas, que o trabalho das minas é mais doloroso, mais exaustivo, mais perigoso do que a maioria dos outros trabalhos; o ferro, o carvão, o potássio, todos esses produtos estão manchados de sangue. Demais a mais, as máquinas automáticas só são vantajosas enquanto servem para produzir em série e em quantidades maciças; o funcionamento delas está, portanto, ligado à desordem e ao esbanjamento que uma centralização econômica exagerada acarreta; por outro lado, elas criam a tentação de produzir muito mais do que o necessário para satisfazer às necessidades reais, o que leva a se consumirem sem proveito tesouros de força humana e de matérias-primas. Também não se deve negligenciar os gastos que todo progresso técnico acarreta por causa das pesquisas prévias, da necessidade de adaptar a esse progresso outros ramos da produção, do abandono do material velho que muitas vezes é jogado fora quando ainda poderia servir por muito tempo. Não se pode medir nada disso, nem mesmo aproximadamente. Só fica claro, em termos globais, e quanto mais sobe o nível da técnica, tanto mais diminuem as vantagens que os novos progressos podem trazer, em relação aos inconvenientes. Entretanto, não temos nenhum meio de perceber com clareza se estamos perto ou longe do limite a partir do qual o progresso técnico deve transformar-se em fator de regressão econômica. Podemos apenas tentar adivinhar empiricamente através da maneira pela qual a economia atual evolui.
Ora, o que vemos é que desde alguns anos para cá, em quase todas as indústrias, as empresas recusam sistematicamente as ino-[fim da p. 248]vações técnicas. A imprensa socialista e comunista tira desse fato declamações eloqüentes contra o capitalismo, mas deixa de explicar por que milagre inovações atualmente dispendiosas se tornariam economicamente vantajosas em regime socialista, ou em qualquer outro que assim se intitule. Ë mais sensato supor que nesse setor não estamos longe do limite do progresso útil; e até, visto que a complicação das relações econômicas atuais e a formidável extensão do crédito impedem os chefes de empresa de perceber imediatamente que um fator outrora vantajoso deixou de sê-lo, podemos concluir, com todas as reservas que um problema tão confuso comporta, que possivelmente esse limite já está ultrapassado.
Um estudo sério da questão deveria, para falar a verdade, considerar muitos outros elementos. Os diversos fatores que contribuem para aumentar o rendimento do trabalho, não se desenvolveram isoladamente, embora seja preciso separá-los numa análise; eles se combinam, e essas combinações produzem resultados de difícil previsão. Além disso, o progresso técnico não serve somente para obter barato o que outrora se conseguia com muitos esforços; torna possíveis obras que sem ele teriam sido quase inimagináveis. Seria o caso de se examinar o valor dessas possibilidades novas, considerando-se b fato de que elas não são apenas possibilidades de construção, mas também de destruição. Mas um estudo como esse deveria obrigatoriamente levar em consideração as relações econômicas e sociais que estão necessariamente ligadas a uma determinada forma da técnica. No momento basta ter compreendido que a possibilidade de progressos posteriores no que diz respeito ao rendimento do trabalho não está fora de discussão; que, aparentemente, temos hoje em dia tantos motivos para esperar uma redução quanto um aumento; e, o que é mais importante, que um crescimento, por assim dizer, contínuo e ilimitado desse rendimento é inconcebível. Só a embriaguez produzida pela rapidez do progresso técnico é que foi o que gerou a louca idéia de que o trabalho poderia tornar-se um dia supérfluo. No plano da ciência pura esta idéia se traduziu pela procura da “máquina de movimento perpétuo”, isto é, a máquina que produzisse indefinidamente trabalho sem nunca consumir; e os sábios reagiram logo com justiça formulando a lei da conservação da energia. No domínio social as divagações são mais bem acolhidas. “A etapa superior do comunismo”, considerada por ‘Marx como o último termo da evolução social, é, em suma, uma utopia por que os revolucionários derramaram seu sangue. Mais exatamente, eles derramaram seu sangue em nome, ou dessa utopia, ou da crença igualmente utópica em que o sistema de produção atual [fim da p. 249] poderia ser posto, por um simples decreto, a serviço de uma sociedade de homens livres e iguais. Como espantar-se com o fato de que todo esse sangue corresse em vão? A história do movimento operário se ilumina assim de uma luz cruel, mas particularmente viva. Podemos resumi-la completamente, ressaltando que a classe operária nunca fez demonstração de força senão servindo a outra coisa que não fosse a revolução operária, O movimento operário pôde dar a ilusão de poder enquanto se tratou para ele de contribuir para liquidar os vestígios de feudalismo, para ordenar e preparar a dominação capitalista, seja sob a forma do capitalismo privado, seja sob a forma do capitalismo de Estado, como foi o caso da Rússia; agora que seu papel cessou nesse terreno, e que a crise lhe coloca diante de si o problema da tomada efetiva do poder pelas massas trabalhadoras, ele se esfarela e dissolve com uma rapidez que abate a coragem dos que nele tinham depositado sua fé. Sobre as suas ruínas, controvérsias intermináveis se prolongam, que não se podem apaziguar senão com as fórmulas mais ambíguas; pois entre todos os homens que ainda se obstinam em falar de revolução, talvez não haja dois que atribuam a essa palavra o mesmo conteúdo. E não é de espantar. A palavra revolução é urna palavra pela qual se mata, se morre, se enviam as massas populares à mor te, mas que não tem nenhum, conteúdo.
Talvez, no entanto, possamos dar um sentido ao ideal revolucionário, se não como perspectiva possível, pelo menos como limite teórico das transformações sociais realizáveis. O que pediríamos à revolução é a abolição da opressão social; mas para que essa noção tenha pelo menos oportunidade de tomar qualquer significado, é preciso cuidado em distinguir entre opressão e subordinação dos caprichos individuais a uma ordem social. Enquanto houver uma sociedade, ela encerrará a vida dos indivíduos em limites bem estreitos, impondo-lhes suas regras; mas essa compressão inevitável não deve ser chamada de opressão, a não ser na medida em que, provocando uma separação entre os que a exercem e os que a suportam, puser os segundos ao sabor dos primeiros, fazendo com isso pesar, até o esmagamento físico e moral, a pressão dos que comandam sobre os que executam. Mesmo depois dessa distinção, nada permite, de início, supor que a supressão da opressão seja, ou possível, ou mesmo apenas concebível como um limite. Marx demonstrou com vigor, em análises cujo alcance ele próprio desconheceu, que o atual regime de produção, isto é, a grande indústria, reduz o operário a não passar de uma engrenagem da fábrica, de um simples instrumento nas mãos daqueles que o dirigem; é em vão que se espera que o progresso técnico possa, com uma diminuição [fim da p. 250] progressiva e continua do esforço da produção, aliviar até fazer desaparecer completamente o duplo peso sobre o homem da natureza e da sociedade. Que problema, portanto, é bem claro; trata-se de saber se se pode conceber uma organização da produção que, embora impotente para eliminar as necessidades naturais e a pressão social daí resultante, permita, pelo menos, que ela se exerça sem esmagar com a opressão os espíritos e os corpos. Numa época como a nossa, ter entendido claramente este problema talvez seja uma condição para poder viver em paz consigo mesmo. Se chegarmos a conceber concretamente as condições dessa organização libertadora, para caminharmos até ela, só nos resta exercer todo o poder de ação, grande ou pequeno, de que dispomos; e, se compreendemos claramente que a possibilidade de tal modo de produção como esse nem mesmo é concebível, pelo menos ganhamos com isso uma forma de poder legitimamente resignar-nos à opressão, e deixar de nos sentirmos cúmplices dela, porque não fazemos nada para impedi-la.
Análise da opressão
Trata-se, em suma, de conhecer o que liga a opressão em geral, e cada forma de opressão em particular, ao regime da produção; em outras palavras, trata-se de conseguir apreender o mecanismo da opressão, de compreender por que ela surge, subsiste, se transforma, como, talvez, ela poderia teoricamente desaparecer. Isso é, ou pouco lhe falta para ser, uma questão nova. Durante séculos, almas generosas consideraram o poder dos opressores uma pura e simples usurpação, à qual era preciso tentar opor-se, ou pela simples expressão de uma reprovação radical, ou pela força armada a serviço da justiça. Das duas maneiras o fracasso sempre foi completo; e, nunca mais significativo do que quando, por um momento, ele tomava a aparência da vitória, como foi o caso da Revolução Francesa, e quando, depois de ter efetivamente conseguido fazer desaparecer uma certa forma de opressão, se assistia, impotente, à imediata instalação de uma nova opressão.
A reflexão sobre esse fracasso retumbante, que viera coroar todos os outros, levou Marx a compreender, enfim, que não se pode suprimir a opressão enquanto subsistirem as causas que a tornam inevitável, e que essas causas estão nas condições objetivas, isto é, materiais, da organização social. Assim sendo, elaborou uma concepção da opressão totalmente nova, não mais como usurpação de um privilégio, mas como órgão de uma função social. Ê essa função mesma que consiste em desenvolver as forças produtivas, na medida em que esse desenvolvimento exige duros esforços e pesadas pri-[fim da p. 251]vações; e, entre este desenvolvimento e a opressão social, Marx e Engels perceberam relações recíprocas. Em primeiro lugar, segundo eles, a opressão só se estabelece quando os progressos da produção suscitarem uma divisão do trabalho adiantada o bastante para que a troca, o comando militar e o governo constituam funções distintas; por outro lado, a opressão, uma vez estabelecida, provoca o desenvolvimento posterior das forças produtivas e muda de forma, à medida que esse desenvolvimento o exige, até o dia em que, tornada para ele um obstáculo e não uma ajuda, ela desaparece pura e simplesmente. Por mais brilhantes que sejam as análises concretas pelas quais os marxistas ilustraram este esquema, e embora ele seja um progresso em relação às ingênuas indignações que substitui, não se pode dizer que traga à luz o mecanismo da opressão. Descreve-lhe apenas parcialmente o nascimento; pois, por que a divisão do trabalho se transformaria necessariamente em opressão? Ele não permite de forma alguma atingir razoavelmente o fim; pois, se Marx pensou mostrar como o regime capitalista acaba por entravar a produção, nem tentou provar que, em nossos dias, qualquer outro regime opressivo a entravaria igualmente; e mais, ignora-se por que a opressão não poderia conseguir manter-se, mesmo tendo-se tornado um fator de regressão econômica. Sobretudo, Marx deixa de explicar por que a opressão é invencível durante o tempo em que é útil, por que os oprimidos revoltados nunca conseguiram fundar uma sociedade não opressiva, fosse com base nas forças produtivas de sua época, fosse mesmo ao preço de uma regressão econômica que dificilmente poderia aumentar sua miséria; e, enfim, ele deixa completamente na sombra os princípios gerais do mecanismo pelo qual uma determinada forma de opressão é substituída por outra.
Mais ainda, não só os marxistas não resolveram nenhum desses problemas, como nem mesmo acreditaram dever formulá-los. Pareceu-lhes ter prestado suficientemente contas da opressão social dizendo que ela corresponde a uma função na luta contra a natureza. Eles se limitaram a apontar essa correspondência para o regime capitalista; mas, de toda forma, supor que uma correspondência como essa constitua uma explicação do fenômeno é aplicar inconscientemente aos organismos sociais o famoso princípio de Lamarck, tão ininteligível quanto cômodo: “a função cria o órgão”. A biologia só começou a ser uma ciência no dia em que Darwin substituiu este princípio pela noção das condições de existência. O progresso consiste em que a função não é mais considerada como a causa, mas como o efeito do órgão, única ordem inteligível; o papel de causa fica, a partir de então, atribuído a um mecanismo cego, o [fim da p. 252] da hereditariedade combinado com as variações acidentais. Por si mesmo, em verdade, esse mecanismo cego só pode produzir seja o que for ao acaso; a adaptação do órgão à função entra aqui em jogo limitando o acaso ao eliminar as estruturas não viáveis, e não mais a título de tendência misteriosa, mas a título de condição de existência; e essa condição se define pela relação do organismo considerado com o meio, em parte inerte e em parte vivo, que o rodeia, e, particularmente, com os organismos semelhantes que lhe fazem concorrência. A adaptação, então, é concebida em relação com os seres vivos como uma necessidade exterior e não mais interior. É claro que este método luminoso não é válido apenas em biologia, mas onde quer que estejamos em presença de estruturas organizadas que não foram organizadas por ninguém. Em matéria social, para poder apoiar-se na ciência, teria sido preciso realizar-se em relação ao marxismo um progresso análogo ao que Darwin realizou em relação a Lamarck. As causas da evolução social não devem mais ser procuradas fora dos esforços cotidianos dos homens considerados como indivíduos. Esses esforços não se dirigem, é claro, para qualquer parte; eles dependem, cada um, do temperamento, da educação, das rotinas, dos costumes, dos preconceitos, das necessidades naturais ou adquiridas, do meio, e, sobretudo, de uma maneira geral, da natureza humana, expressão que, por ser incomoda de definir, provavelmente não é vazia de sentido. Mas, dada a diversidade quase indefinida dos indivíduos; dado, sobretudo, que a natureza humana comporta, entre outras coisas, o poder de inovar, de criar, de se ultrapassar, esse tecido de esforços incoerentes produziria fosse o que fosse de organização social, se o acaso não se encontrasse nesse domínio limitado pelas condições de existência às quais toda sociedade se deve conformar sob pena de ser subjugada ou aniquilada. Essas condições de existência são na maioria das vezes ignoradas pelos homens que se submetem; elas agem, não impondo aos esforços de cada um uma direção determinada, mas condenando como ineficazes todos os esforços dirigidos a rumos que elas interditam.
Como para os seres vivos, essas condições de existência são determinadas primeiramente, pelo meio natural, depois pela existência, pela atividade, e, particularmente, pela concorrência dos outros organismos da mesma espécie, isto é, pela ocorrência dos outros agrupamentos sociais. Mas um terceiro fator ainda entra em jogo: a disposição do meio natural, a ferramenta, a arma, os procedimentos de trabalho e de combate; e esse fator ocupa um lugar à parte porque, se ele interfere na forma da organização social, sofre por [fim da p. 253] sua vez a reação desta. Aliás, esse fator é o único sobre o qual os membros de uma sociedade poderiam, talvez, ter algum domínio. Este panorama é abstrato demais para nos orientar, mas, se pudéssemos, a partir desta visão sumária, chegar a análises concretas, seria enfim possível colocar o problema social. A boa vontade esclarecida dos homens, todos agindo como indivíduos, é o único princípio possível do progresso social; se as necessidades sociais, urna vez claramente percebidas, se revelassem fora do alcance dessa boa vontade — como as que regem os astros —, bastaria a cada um olhar a história prosseguir seu caminho como olhamos as estações passarem, fazendo o possível para nos resguardarmos, junto com os que amamos, da infelicidade de nos transformarmos em instrumento ou em vítima da opressão social. De outra forma, seria preciso inicial-mente definir, a título de limite ideal, as condições objetivas que propiciariam uma organização social totalmente isenta de opressão; depois, procurar por que meios e em que medida se podem transformar as condições efetivamente dadas, de maneira a aproximá-las desse ideal; achar qual é a forma menos opressiva de organização social para um conjunto de condições objetivas determinadas; finalmente, definir nesse setor o poder de ação e as responsabilidades dos indivíduos considerados como tal. Só com essas condições a ação política poderia tornar-se algo semelhante a um trabalho, em vez de ser, como tem sido até agora, ora um jogo, ora um ramo da magia.
Infelizmente, para se chegar aí, não bastam reflexões aprofundadas, rigorosas, dóceis, para se evitar todo erro diante do exame mais atento; são necessários também estudos históricos, técnicos e científicos, de uma extensão e de uma precisão inauditas, e conduzidos a um ponto de vista totalmente novo. Entretanto, os acontecimentos não esperam; o tempo não vai parar a fim de nos preparar lazeres; a atualidade se nos impõe de uma forma urgente e nos ameaça com catástrofes que arrastariam, entre muitas outras desgraças arrasadoras, à impossibilidade material de estudar e de escrever senão a serviço dos opressores. O que fazer? Não adiantaria deixar-se arrastar na confusão por um arrebatamento irrefletido. Ninguém tem a mais leva idéia das finalidades nem dos meios do que ainda se chama, por hábito, de ação revolucionária. Quanto ao reformismo, o princípio do mal menor que lhe constitui a base é, claro, eminentemente razoável, por mais desacreditado que esteja pelo erro daqueles que o usaram até agora; só que, se ainda não serviu apenas de pretexto para capitular, não foi devido à covardia de alguns chefes, mas por uma ignorância infelizmente comum a to-[fim da p. 254] dos; pois enquanto não se definiu o pior e o melhor em função de um ideal clara e concretamente concebido, e enquanto não se determinou a margem exata das possibilidades, não se sabe qual é o mal menor, e então, fica-se constrangido a aceitar sob esse rótulo tudo o que impõem efetivamente aqueles que têm a força em mãos, porque qualquer mal real é sempre menor do que os males possíveis que uma ação não calculada se arrisca sempre a trazer. De uma forma geral, cegos que somos atualmente, não temos escolha senão entre a capitulação e a aventura. No entanto, não nos podemos dispensar de determinar desde já a atitude a tomar em relação à situação presente. Eis por que, enquanto esperamos ter, se isso for possível, desmontado o mecanismo social, talvez seja permitido tentar esboçar os princípios; contanto que fique bem entendido que um tal esboço exclui toda espécie de afirmação categórica, e visa unicamente a submeter algumas idéias, a título de hipóteses, ao exame crítico das pessoas de boa fé. De mais a mais, não estamos sem guia na matéria. Se o sistema de Marx, em suas linhas gerais, é um fraco auxílio, já não se pode dizer o mesmo das análises às quais ele foi levado pelo estudo concreto do capitalismo, e nas quais, pensando que se limitava a caracterizar um regime, sem dúvida mais de uma vez captou a natureza escondida da própria opressão.
Entre todas as formas de organização social que a história nos apresenta, muito raras são as que aparecem realmente isentas de opressão; e, ainda assim, são mal conhecidas. Todas correspondem a um nível extremamente baixo da produção, tão baixo que a divisão do trabalho nelas é praticamente desconhecida, a não ser entre os sexos, e cada família só produz o de que precisa para consumir. Aliás, é bem claro que uma condição material como essa exclui forçosamente a opressão, já que cada homem, obrigado a se alimentar por si mesmo, está continuamente enfrentando a natureza exterior; mesmo a guerra, nesse estádio, é guerra de pilhagem e de extermínio, não de conquista, porque os meios de garantir a conquista, e sobretudo de tirar partido dela, não existem, o que é surpreendente, não é que a opressão só apareça a partir das formas mais elevadas da economia, é que ela as acompanhe sempre. Portanto, entre uma economia inteiramente primitiva e as formas econômicas mais desenvolvidas não há apenas diferença de grau, mas também de natureza. Com efeito, se do ponto de vista do consumo só existe a passagem para um pouco mais de bem-estar, a produção, que é o fator decisivo, se transforma em sua própria essência. Essa transformação, à primeira vista, consiste numa libertação progressiva em relação à natureza. Nas formas totalmente primitivas da produção, caça, pesca, colheita, o esforço humano aparece como uma simples [fim da p. 255] reação à pressão inexorável continuamente exercida pela natureza sobre o homem, e isso de duas maneiras; primeiro ele se realiza, ou quase, sob a pressão imediata, sob o aguilhão continuamente sentido das necessidades naturais; e, por uma conseqüência indireta, a ação parece receber a sua forma da própria natureza, por causa do papel importante que têm nisso uma intuição análoga ao instinto animal e uma paciente observação dos fenômenos naturais mais freqüentes, por causa, também da indefinida repetição dos processos que tantas vezes deram certo sem que se saiba por quê, e que são sem dúvida considerados acolhidos pela natureza com um favor particular. Nesse estágio, cada homem é necessariamente livre em relação aos outros homens, porque está em contato imediato com as condições de sua própria existência, e porque nada de humano se interpõe entre elas e ele; mas em troca, e na mesma medida, ele está estreitamente submetido à dominação da natureza, e bem o mostra, divinizando-a. Nas etapas superiores da produção, a pressão da natureza continua certamente a exercer-se, e sempre impiedosamente, mas duma forma aparentemente menos imediata; parece tornar-se cada vez mais ampla e deixar uma margem crescente à livre escolha do homem e à sua faculdade de iniciativa e de decisão. A ação não está mais colada de minuto a minuto às exigências da natureza: aprende-se a formar reservas a longo prazo para necessidades ainda não sentidas; os esforços que se voltam apenas para uma utilidade indireta se tornam cada vez mais numerosos; ao mesmo tempo, no tempo e no espaço, se torna possível e necessária uma coordenação sistemática cuja importância cresce continuamente. Em resumo, o homem parece passar por etapas em relação à natureza, que vão da escravidão à dominação. Ao mesmo tempo, a natureza vai perdendo gradativamente seu caráter divino, e a divindade reveste cada vez mais a forma humana. Infelizmente, essa emancipação não passa de uma aparência lisonjeira. Na verdade, nestas etapas superiores, a ação humana continua, em seu conjunto, a não passar dc pura obediência ao aguilhão brutal de uma necessidade imediata; só que, em vez de ser espicaçado pela natureza, o homem é, a partir de então, espicaçado pelo homem. Aliás, é sempre a pressão da natureza que continua a se fazer sentir, embora indiretamente; pois a opressão se exerce pela força, e no fim das contas, toda força tem sua fonte na natureza.
A noção de força está longe de ser simples, e, no entanto, ela é a primeira que é preciso elucidar para colocar os problemas sociais. Força e opressão, são duas coisas; mas o que é preciso compreender, antes de mais nada, é que não é a maneira pela qual se usa uma [fim da p. 256] força qualquer, mas a sua própria natureza que determina se ela é ou não opressiva. Foi o que Marx percebeu claramente no que diz respeito ao Estado; compreendeu que esta máquina de moer os homens não pode parar de moer enquanto estiver em exercício, esteja em que mão estiver. Mas esta visão tem um alcance muito mais geral. A opressão procede exclusivamente de condições objetivas. A primeira delas é a existência de privilégios; e não são as leis ou decretos dos homens que determinam os privilégios, nem os títulos de propriedade; é a própria natureza das coisas. Certas circunstâncias, que correspondem a etapas sem dúvida inevitáveis do desenvolvimento humano, fazem surgir forças que se interpõem entre o homem comum e suas próprias condições de existência, entre o esforço e o fruto do esforço, e que são, por sua própria essência, o monopólio de alguns, pelo fato de não poderem ser repartidas entre todos; desde então, esses privilegiados, embora dependam para viver do trabalho de outrem, dispõem do destino daqueles de quem dependem, e a igualdade perece. Ë o que se dá inicialmente quando os ritos religiosos pelos quais o homem julga conciliar a natureza para si, se tornam numerosos e complicados demais para serem conhecidos por todos, e se tornam o segredo — conseqüentemente, o monopólio — de alguns sacerdotes; o sacerdote dispõe então, embora seja apenas por uma ficção, de todos os poderes da natureza, e é em nome deles que comanda. Nada de essencial mudou quando esse monopólio se constituiu, já não mais por ritos, mas por processos científicos, e que aqueles que os detêm se chamam, em vez de sacerdotes, cientistas e técnicos. As armas, também, fazem nascer um privilégio, no dia em que, por um lado, elas tenham a força bastante para tornar impossível a defesa de homens desarmados contra homens armados, e em que, por outro, o seu manejo se tenha tornado muito aperfeiçoado e portanto difícil o bastante para exigir um longo aprendizado e uma prática contínua. Pois, a partir de então, os trabalhadores estão incapazes de se defender, enquanto os guerreiros estão incapacitados para produzir, mas podem sempre apoderar-se pelas armas dos frutos do trabalho de outrem; assim, os trabalhadores estão à mercê dos guerreiros, e não inversamente. O mesmo acontece com o ouro, e mais em geral, com a moeda, desde que a divisão do trabalho é tão extensa que nenhum trabalhador pode viver de seus produtos sem ter trocado pelo menos uma parte deles pelos produtos dos outros; a organização das trocas se torna, então, necessariamente o monopólio de alguns especialistas, e estes, tendo a moeda em mãos, podem ao mesmo tempo prover-se, para viver, dos frutos do trabalho de outrem, e privar os produtores do indispensável. Enfim, por toda a parte em que na luta contra os ho-[fim da p. 257]mens ou contra a natureza os esforços precisam se acrescentar e se coordenar entre si para serem eficazes, a coordenação se torna o monopólio de alguns dirigentes assim que ela atinge um certo grau de complicação, e a primeira lei da execução é, então, a obediência; é o caso tanto da administração dos negócios públicos quanto das empresas. Pode haver outras fontes de privilégios, mas estas são as principais; além disso excetuando-se a moeda que aparece em um dado momento da história, todos estes fatores agem em todos os regimes opressivos; o que muda é a maneira pela qual eles se repartem e se combinam, é o grau de concentração do poder; é, também, o caráter mais ou menos fechado, mais ou menos misterioso, de cada monopólio. No entanto, os privilégios por si só não bastam para determinar a opressão. A desigualdade poderia facilmente ser abrandada pela resistência dos fracos e pelo espírito de justiça dos fortes; ela não daria nascimento a uma necessidade ainda mais brutal, como são as necessidades naturais em si mesma, se não interviesse um outro fator: a luta pelo poder.
Como Marx compreendeu claramente com relação ao capitalismo, como alguns moralistas perceberam de uma forma mais geral, o poder encerra uma espécie de fatalidade que pesa tão impiedosamente sobre os que comandam quanto sobre os que obedecem; mais ainda, é, na medida em que ele sujeita os primeiros, que, por intermédio deles, esmaga os segundos. A luta contra a natureza comporta necessidades iniludíveis, que nada faz ceder, mas essas necessidades encerram em si seus limites; a natureza resiste, mas não se defende, e onde só ela estiver em jogo, cada situação levanta obstáculos bem definidos que dão ao esforço humano a sua medida. Já tudo muda quando as relações entre homens substituem o contato direto do homem com a natureza. Conservar o poder é, para os poderosos, uma necessidade vital, visto que é seu poder que os alimenta; ora, eles têm de conservá-lo ao mesmo tempo contra seus rivais e contra seus inferiores, que certamente tentarão livrar-se de senhores perigosos; pois, num circulo vicioso, o senhor é temível ao escravo, porque ele o teme, e vice-versa; o mesmo acontece entre potências rivais.
Mais ainda, as duas lutas que cada homem poderoso deve travar, uma contra aqueles sobre os quais reina, e a outra contra os seus rivais, se misturam inextricavelmente e sem cessar uma acende a outra. Um poder, seja qual for, deve sempre tender a afirmar-se no interior, por meio de sucessos obtidos no exterior, pois esses sucessos lhe dão meios de coação mais poderosos; além disso, a luta contra os rivais alia a seu séquito seus próprios escravos, que têm a [fim da p. 258] ilusão de estarem interessados no resultado da luta. Mas, para conseguir que os escravos obedeçam e se curvem aos sacrifícios indispensáveis para uma luta vitoriosa, o poder deve tornar-se mais opressivo; para estar à altura de exercer essa opressão, é ainda mais imperiosamente forçado a se voltar para o exterior, e assim por diante. Pode-se percorrer a mesma corrente partindo de um outro elo; mostrar que um agrupamento social, para estar à altura de se defender contra as potências exteriores que desejariam anexá-lo, deve submeter-se a uma autoridade opressiva; que o poder assim estabelecido, para se manter no lugar, deve atiçar os conflitos com os poderes rivais; e assim por diante, mais uma vez. Assim é que o mais funesto dos círculos viciosos arrasta toda a sociedade atrás de seus senhores numa ronda insensata.
Não se pode quebrar este círculo senão de duas maneiras, ou suprimindo-se a desigualdade, ou estabelecendo-se um poder estável, um poder tal que haja equilíbrio entre os que comandam e os que obedecem. Esta segunda solução é a procurada por todos os que se chamam partidários da ordem, ou, pelo menos, por todos os que, entre esses, não foram levados pelo servilismo, nem pela ambição; foi, sem dúvida, o caso dos escritores latinos que louvaram a imensa majestade da paz romana”, de Dante, da escola reacionária do inicio do século XIX, de Balzac, e, hoje, dos homens de direita sinceros e ponderados. Mas esta estabilidade do poder, objetivo dos que se dizem realistas, aparece como uma quimera, se a olharmos de perto, como a utopia anarquista.
Entre o homem e a matéria, cada ação, feliz ou não, estabelece um equilíbrio que não pode ser rompido senão de fora; pois a matéria é inerte. Uma pedra deslocada aceita seu novo lugar; o vento aceita levar ao destino o mesmo barco que teria desviado da rota, se a vela e o leme não estivessem bem dispostos. Mas os homens são seres essencialmente ativos, e possuem a faculdade de se auto-determinarem, da qual não podem nunca abdicar, mesmo que o queiram, a não ser no dia em que entram, pela morte, no estado de matéria inerte; de modo que toda vitória sobre os homens encerra em si mesma o germe de uma possível derrota, a menos que se vá até a exterminação. Mas a exterminado suprime o poder suprimindo o objeto. Assim, há na própria essência do poder uma contradição fundamental que o impede de existir propriamente; os que chamamos de senhores, continuamente pressionados para reforçar seu poder — sob pena de o ver usurpado —, estão sempre atrás de uma dominação essencialmente impossível de possuir, perseguição de que os [fim da p. 259] suplícios infernais da mitologia grega oferecem belas imagens. Seria diferente se um homem pudesse possuir em si mesmo uma força superior à de muitos outros reunidos; mas isso nunca se dá; os instrumentos do poder, armas, ouro, máquinas, segredos mágicos ou técnicos, sempre existem fora daquele que dispõe deles, e podem ser tomados por outros. Por isso todo poder é instável.
De uma forma geral, entre seres humanos, as relações de dominação e de submissão, por não serem nunca plenamente aceitáveis, constituem sempre um desequilíbrio sem remédio e que se agrava continuamente; o mesmo acontece no domínio da vida privada, onde o amor, por exemplo, destrói todo equilíbrio na alma assim que tenta sujeitar seu objeto, ou sujeitar-se a ele. Mas aí, pelo menos, nada de externo se opõe a que a razão venha colocar tudo em ordem estabelecendo a liberdade e a igualdade; ao passo que as relações sociais, na medida em que os próprios procedimentos do trabalho e da luta excluem a igualdade, parecem fazer a loucura pesar sobre os homens como uma fatalidade exterior. Pois, como não há nunca poder, mas apenas corrida ao poder, como essa corrida é sem termo, sem limite, sem medida, não há também limite nem medida para os esforços que ela exige; os que se lhe entregam, pressionados para fazerem sempre mais do que seus rivais, que, por sua vez, se esforçam para fazerem mais do que eles, devem sacrificar não somente a existência dos escravos, mas a sua própria e a dos entes mais queridos; assim Agamenon imolando sua filha renasceu nos capitalistas que, para manterem seus privilégios, aceitam levianamente guerras suscetíveis de lhes arrebatarem os filhos.
Assim, a corrida ao poder sujeita o mundo inteiro, os poderosos e os fracos. Marx viu-o bem no que diz respeito ao regime capitalista. Rosa Luxemburgo protestava contra a aparência de “carrossel no vazio” que apresenta o quadro marxista de acumulação capitalista, esse quadro no qual o consumo aparece como um “mal necessário”, que será preciso reduzir até o mínimo, um simples meio para manter em vida os que se consagram, chefes ou operários, à finalidade suprema, finalidade que não passa da fabricação de ferramentas, ou seja, dos meios de produção. E, no entanto, é o profundo absurdo desse quadro que faz a sua verdade profunda; verdade que transborda singularmente do quadro do regime capitalista, O único caráter próprio desse regime é que os instrumentos da produção industrial são, ao mesmo tempo, as principais armas da corrida ao poder; mas sempre os processos da corrida ao poder, sejam quais forem, submetem os homens pela mesma vertigem e se impõem a eles como fins absolutos. Ë o reflexo dessa vertigem que [fim da p. 260] dá uma grandeza épica a obras como a Comédia Humana, ou as histórias de Shakespeare, ou as canções de gesta, ou a Ilíada. O verdadeiro tema da Ilíada é a dominação da guerra sobre os guerreiros, e, por seu intermédio, sobre todos os humanos; ninguém sabe por que cada um se sacrifica, e sacrifica todos os seus numa guerra assassina e sem objetivo; é por isso que, ao longo de todo o poema, é aos deuses que se atribui a influência misteriosa que desmancha todas as conferências de paz, reacende continuamente as hostilidades, traz de volta os combatentes que um lampejo de razão leva a abandonar a luta.
Assim, nesse antigo e maravilhoso poema aparece já o mal essencial da humanidade, a substituição dos fins pelos meios. Ora a guerra aparece em primeiro plano, ora a procura da riqueza, ora a produção, mas o mal continua o mesmo. Os moralistas vulgares se queixam de que o homem é arrastado por seu interesse pessoal; oxalá fosse isso! O interesse é um princípio de ação egoísta, mas limitado, razoável, que não pode gerar males ilimitados. A lei de todas as atividades que dominam a existência social, é, ao contrário, excetuando-se o caso das sociedades primitivas, que cada um sacrifique a vida humana, em si mesmo e em outrem, por coisas que não passam de meios de viver. Esse sacrifício se reveste de diversas formas, mas tudo se resume na questão do poder. O poder, por definição, não passa de um meio; ou, mais exatamente, possuir um poder consiste simplesmente em possuir meios de ação que ultrapassam a força tão restrita de que um indivíduo dispõe sozinho. Mas a procura do poder, pelo fato de ser essencialmente impotente para agarrar seu objeto, exclui toda consideração de fim,e chega, por uma inversão inevitável, a tomar o lugar de todos os fins. É essa inversão da relação entre o meio e o fim, é essa loucura fundamental que explica tudo o que há de insensato e sangrento no curso da história. A história humana é apenas a história da escravização que torna os homens, tanto opressores quanto oprimidos, simples joguetes dos instrumentos de dominação que eles mesmos fabricaram, rebaixando, assim, a humanidade viva a ser a coisa de coisas inertes.
Não são, portanto, os homens, mas as coisas que dão a esta corrida vertiginosa para o poder seus limites e suas leis. Os desejos dos homens não bastam para regrá-la. Os senhores bem que podem sonhar com moderação, mas lhes é proibido praticar tal virtude, sob pena de derrota, a não ser numa medida fraquíssima; por isso, com exceções quase miraculosas, como Marco Aurélio, eles se tornam logo incapazes até de imaginá-la. Quanto aos oprimidos, sua revolta permanente, que sempre ferve, embora só por momentos es-[fim da p. 261]toure, pode entrar no jogo, tanto de forma a agravar o mal quanto de forma a restringi-lo; e ela constitui, sobretudo, em termos globais, um fator agravante, porque obriga os senhores a fazer pesar seu poder sempre mais gravemente por causa do medo de perdê-lo. De tempos em tempos, os oprimidos conseguem expulsar uma equipe de opressores e substitui-la por outra, e por vezes conseguem até mudar a forma da opressão; mas quanto a suprimir a própria opressão, seria preciso para tanto suprimir as suas fontes, abolir todos os monopólios, os segredos mágicos ou técnicas que dão poder sobre a natureza, armas, moeda, coordenação dos trabalhos. Caso os oprimidos fossem conscientes, o bastante para tomarem essa decisão, não poderiam ter êxito. Seria condenar-se a cair imediatamente sob a escravidão dos agrupamentos sociais que não fizeram a mesma transformação; e mesmo que esse perigo fosse afastado por milagre, seria condenar-se à morte, pois, uma vez esquecidos os processos da produção primitiva e transformado o meio natural a que eles correspondiam, não se pode reencontrar o contato imediato com a natureza. Assim, apesar de todas as veleidades de se acabar com a loucura e a opressão,a concentração do poder e o agravamento de seu caráter tirânico não teriam limites se estes, felizmente, não se encontrassem na natureza das coisas. Importa determinar sumariamente quais podem ser esses limites; e para isso é preciso ter presente no espírito que, se a opressão é uma necessidade da vida social, essa necessidade não tem nada de providencial. Não é por que ela se torna nociva à produção que a opressão poderá acabar; a “revolta das forças produtoras”, tão ingenuamente invocada por Trotsky como um fator da história, é pura ficção. Também seria um engano supor que a opressão deixa de ser inelutável, desde que as forças produtoras estejam suficientemente desenvolvidas para garantir a todos o bem-estar e o lazer. Aristóteles admitia que não haveria mais nenhum obstáculo para a supressão da escravidão se se pudesse fazer com que “escravos mecânicos” assumissem os trabalhos indispensáveis, e Marx, quando tentou antecipar o futuro da espécie humana, não fez mais que retomar e desenvolver este conceito. Isto seria justo, se os homens fossem guiados pela consideração pelo bem-estar; mas desde a época da Ilíada até os nossos dias, as exigências insensatas da luta pelo poder tiram até o lazer para pensar em bem-estar. A elevação do rendimento do esforço humano continuará incapaz de aliviar o peso desse esforço enquanto a estrutura social implicar a subversão da relação entre o meio e o fim; por outras palavras, enquanto os processos do trabalho e da luta derem a alguns um poder discricionário sobre as massas; pois os [fim da p. 262] cansaços e as privações já agora inúteis na luta contra a natureza ficarão absorvidos pela guerra entre os homens para a defesa ou para a conquista dos privilégios. A partir do momento em que a sociedade está dividida em homens que ordenam e homens que executam, toda a vida social está comandada pela luta pelo poder, e a luta pela subsistência só intervém como um fator, na verdade indispensável, da primeira. A visão marxista segundo a qual a existência social é determinada pelas relações entre o homem e a natureza, estabelecidas pela produção, evidentemente continua sendo a única base sólida para todo estudo histórico; só que essas relações devem ser consideradas primeiramente em função do problema do poder, passando. os meios de subsistência a ser, simplesmente, um dado desse problema. Esta ordem parece absurda, mas só reflete o absurdo essencial que está no coração da vida social. Um estudo científico da história seria, então, um estudo das ações e das reações que se produzem continuamente entre a organização do poder e os processos da produção; pois se o poder depende das condições materiais da vida, ele nunca cessa de transformar essas mesmas condições. Um estudo como esse ultrapassa atualmente, de longe, as nossas possibilidades; mas, antes de abordarmos a complexidade infinita dos fatos, é bom elaborarmos um esquema abstrato desse jogo de ações e de reações, mais ou menos como os astrônomos tiveram de inventar uma esfera celeste imaginária para reconhecê-la nos movimentos e nas posições dos astros.
Ë preciso tentar-se inicialmente levantar uma lista das necessidades inelutáveis que limitam toda espécie de poder. Em primeiro lugar, qualquer poder se apóia em instrumentos que têm em cada situação um alcance determinado. Assim, não se comanda da mesma maneira por meio de soldados armados de flechas, de lanças e de espada e por meio de aviões e de bombas incendiárias; o poder do outro depende do papel exercido pelas trocas na vida econômica; o dos segredos técnicos é medido pela diferença entre o que se pode realizar por meio deles e o que se pode realizar sem eles; e assim por diante. A rigor, sempre é preciso colocar neste balanço as astúcias com as quais os poderosos obtêm por persuasão aquilo que não têm condições de obter por força, seja colocando os oprimidos numa tal situação que eles tenham ou julguem ter um interesse imediato em fazer o que lhes é pedido, seja inspirando-lhes um fanatismo capaz de lhes fazer aceitar todos os sacrifícios. Em segundo lugar, como o poder que um ser humano realmente exerce, só se estende até o que se acha efetivamente submetido a seu controle, o poder se choca sempre com os próprios limites da faculdade de con-[fim da p. 263] trole, que são muito estreitos. Pois nenhum espírito pode abraçar de uma só vez todas as idéias; nenhum homem pode-se achar ao mesmo tempo em vários lugares; e tanto para o senhor como para o escravo, o dia só tem vinte e quatro horas. A colaboração constitui, aparentemente, um remédio para esse inconveniente; mas como ela não é nunca de todo isenta de rivalidade, daí resultam complicações infinitas. As faculdades de examinar, de comparar, de pesar, de decidir, de combinar são essencialmente individuais, e o mesmo ocorre com o poder, cujo exercício é inseparável dessas faculdades; o poder coletivo é uma ficção, pelo menos em última análise. Quanto à soma de atividades que podem cair sob o controle de um único homem, ela depende em grande parte de fatores individuais tais como a extensão e a rapidez da inteligência, a capacidade de trabalho, a firmeza do caráter; mas depende também das condições objetivas do controle, maior ou menor rapidez de transportes e de informações, simplicidade ou complicação das engrenagens do poder. Finalmente, o exercício de qualquer poder tem como condição um excedente na produção dos meios de subsistência, e um excedente bem considerável para que todos os que se consagram, na qualidade de senhores, ou na qualidade de escravos, à luta pelo poder, possam viver. Ë claro que a medida deste excedente depende do modo de produção, e, conseqüentemente, da organização social. Eis, pois, três fatores que permitem conceber o poder político e social como se constituíssem, a cada momento, algo semelhante a uma força mensurável. No entanto, para completar o quadro, é preciso considerar-se que os homens que se encontram em relação com o fenômeno do poder, seja na qualidade de senhores, seja na qualidade de escravos, são inconscientes dessa analogia. Os poderosos, sejam eles sacerdotes, chefes militares, reis ou capitalistas, sempre, acreditam comandar em virtude de um direito divino; e os que lhes estão submetidos, sentem-se esmagados por um poder que lhes parece divino ou diabólico, mas, de qualquer maneira, sobrenatural. Toda sociedade opressiva é cimentada por essa religião do poder, que falseja todas as relações sociais, permitindo que os poderosos mandem além do que podem impor; o mesmo acontece nos momentos de efervescência popular, momentos nos quais, ao contrário, todos, escravos revoltados e senhores ameaçados, esquecem quão pesadas e sólidas são as cadeias da opressão.
Assim sendo, um estudo científico da história deveria começar por analisar as reações exercidas a cada instante pelo poder sobre as condições que fixam objetivamente seus limites; e um esboço hipotético do jogo dessas reações é indispensável para guiar uma análise [fim da p. 264] como essa, aliás, difícil demais, dadas as nossas atuais possibilidades. Algumas dessas reações são Conscientes e desejadas. Todo poder se esforça conscientemente, na medida de seus meios, medida determinada pela organização social, para melhorar em seu próprio domínio a produção e o controle; a história fornece muitos exemplos disso, desde os faraós até os nossos dias, e é nisso que se apóia a noção de despotismo esclarecido. Em contraponto, todo poder se esforça também e sempre conscientemente,por destruir em seus rivais os meios de produzir e de administrar, e é da parte destes o objeto de uma tentativa análoga. Assim, a luta pelo poder é ao mesmo tempo construtiva e destrutiva e leva ou a um progresso ou a uma decadência econômica, conforme predominar a construção ou a destruição; e é claro que numa determinada civilização a destruição se há de exercer numa medida tanto maior quanto mais difícil for a um poder estender-se sem se embater contra poderes rivais de força mais ou menos igual. Mas as conseqüências indiretas do exercício do poder têm muito mais importância do que os esforços conscientes dos poderosos. Todo poder, pelo fato mesmo de se exercer, estende, até o limite do possível, as relações sociais sobre as quais se apóia; assim, o poder militar multiplica as guerras, o capital comercial multiplica as trocas. Ora, acontece por vezes, por uma espécie de acaso providencial, que essa extensão faz surgirem, por um mecanismo qualquer, fontes novas que possam tornar possível uma nova extensão, e assim por diante, mais ou menos como o alimento reforça os corpos vivos em pleno crescimento e lhes permite dessa forma conquistar ainda mais alimento, de forma a adquirir forças maiores. Todos os regimes fornecem exemplos desses acasos providenciais; pois sem tais acasos nenhuma forma de poder conseguiria durar, de modo que só subsistem os poderes que se beneficiam deles. Assim a guerra permitia aos romanos apresar escravos, isto é, trabalhadores na força da idade cuja infância fora alimentada por outros; o proveito tirado do trabalho escravo permitia reforçar o exército, e o exército mais forte empreendia guerras mais vastas que lhe davam um novo e mais considerável espólio de escravos. Da mesma forma, as estradas que os romanos construíam com fins militares facilitavam depois a administração e a exploração das províncias e contribuíam, portanto, para manter recursos para novas guerras. Se passarmos aos tempos modernos, veremos, por exemplo, que a extensão das trocas provocou uma divisão maior do trabalho, que, por sua vez, tornou indispensável uma maior circulação das mercadorias; e ainda mais, o aumento de produção resultante forneceu novas fontes que foi possível transformar em capital [fim da p. 265] comercial e industrial. Quanto à grande indústria, é claro que cada progresso importante do maquinismo criou ao mesmo tempo fontes, instrumentos e um estímulo para um novo progresso. Da mesma forma, foi a técnica da grande indústria que acabou por fornecer os meios de controle e de informação indispensáveis à economia centralizada, que é aonde chega infalivelmente a indústria, bem como o telégrafo., o telefone, a imprensa diária. Pode-se dizer o mesmo dos meios de transporte. No decorrer da história poderíamos encontrar uma imensa quantidade de exemplos análogos apontando os aspectos da vida social desde os maiores aos menores. Pode-se definir o crescimento de um regime pelo fato de que lhe basta funcionar para suscitar novos recursos que lhe permitem funcionar em maior escala.
Este fenômeno de desenvolvimento automático é tão impressionante que se presta à tentação de imaginar que um regime constituído com felicidade, se nos permitem tal expressão, subsistiria e progrediria indefinidamente. Foi exatamente isso que o século XIX, incluindo os socialistas, imaginou como o regime da grande indústria. Mas se é fácil imaginar de uma forma vaga um regime opressivo que nunca conhecesse a decadência, já não acontece o mesmo quando se pretende conceber clara e concretamente a extensão indefinida de um poder determinado. Se ele pudesse estender sem fim os seus meios de controle, ele se aproximaria indefinidamente de um limite que seria como que o equivalente da ubiqüidade; se pudesse estender sem fim seus recursos, seria como se a natureza que o rodeia, tivesse evoluído gradativamente no sentido dessa generosidade sem reservas de que se beneficiavam Adão e Eva no paraíso terrestre; e, enfim, se ele pudesse estender indefinidamente o alcance de seus próprios instrumentos — sejam armas, ouro, segredos técnicos, máquinas ou qualquer outra coisa — tenderia a abolir essa correlação que, ligando indissoluvelmente a noção de senhor à de escravo, estabelece entre senhor e escravo uma relação de dependência recíproca. Não se pode provar que tudo isso seja impossível, mas é preciso admitir que é impossível, ou então tomar a resolução de encarar a história humana como um conto de fadas. De uma forma geral, só se pode considerar o mundo em que vivemos submetido a leis quando se admite que todo fenômeno nele é limitado; e é também o caso do fenômeno do poder, como o havia compreendido Platão. Se se quer considerar o poder como um fenômeno concebível, é preciso pensar que ele pode estender as bases sobre as quais se assenta só até a um certo ponto, depois do qual ele se choca com algo como um muro intransponível. Mas, apesar disso, não lhe [fim da p. 266] é possível parar; o aguilhão da rivalidade o obriga a ir mais longe, sempre mais longe, isto é, a ultrapassar os limites no interior dos quais ele pode efetivamente exercer-se. Estende-se além do que pode controlar; comanda além do que pode impor; gasta além de seus próprios recursos. Esta é a contradição interna que todo regime opressivo carrega em si como um germe de morte; ela é constituída pela oposição entre o caráter necessariamente limitado das bases materiais do poder e o caráter necessariamente ilimitado da corrida ao poder enquanto relação entre os homens.
Pois, assim que um poder ultrapassa os limites que lhe são impostos pela natureza das coisas, encolhe as bases sobre as quais se apóia, torna esses mesmos limites cada vez mais estreitos. Estendendo-se além do que pode controlar, gera parasitismo, esbanjamento, desordem, que, uma vez surgidos, crescem automaticamente. Tentando comandar onde não tem condições de constranger, provoca reações que não pode nem prever nem regulamentar. Enfim, querendo estender a exploração dos oprimidos além do que os recursos objetivos permitem, esgota esses mesmos recursos; é isso sem dúvida o que significa o conto antigo e .popular da galinha de ovos de ouro. Sejam quais forem as fontes de onde os exploradores extraiam os bens de que se apropriam, chega um momento em que tal processo de exploração que era, no início, e à medida que se estendia, cada vez mais produtivo, se torna em seguida, ao contrário, cada vez mais custoso. Assim, o exército romano, que no início enriquecera Roma, acabou por arruiná-la; assim, os cavaleiros da Idade Média, cujas lutas tinham dado no iníci.o uma relativa segurança aos camponeses que ficavam um pouco protegidos contra os bandoleiros, acabaram, no decorrer de suas continuas guerras, devastando os campos que os alimentavam; e o capitalismo parece também atravessar uma fase desse gênero. Ainda uma vez, não se pode provar que deva ser sempre assim; mas é preciso admiti-lo, a menos que se encare a possibilidade de recursos inesgotáveis. Assim, é a própria natureza das coisas que amolda esta divindade justiceira que os gregos adoravam com o nome de Nêmesis e que castiga o descomedimento.
Quando urna determinada forma de dominação é freada no seu embalo e encurralada na decadência, é preciso que ela comece a desaparecer pouco a pouco; às vezes, é ao contrário, então, que ela se torna mais duramente opressiva e que ela esmaga os seres humanos sob seu peso, tritura sem piedade corpos, corações e espíritos. Só que, como todos começam pouco a pouco a ficar sem recursos, que seriam necessários a uns para vencer, a outros para viver, chega [fim da p. 267] um momento em que, de todos os lados se procuram febrilmente expedientes. Não há nenhum motivo para que uma procura como essa tenha êxito; e nesse caso o regime só pode terminar desmoronando-se por falta de’ recursos para subsistir, e cede o lugar, não a um outro regime mais bem organizado, mas a uma desordem, a uma miséria, a uma vida primitiva que duram até que uma causa qualquer faça surgir novas relações de força. Se for de outra forma, se a procura de novos recursos for frutífera, novas formas de vida social surgem, prepara-se lentamente uma mudança de regime, subterraneamente. Subterraneamente, pois essas novas formas não se podem desenvolver senão enquanto forem compatíveis com a ordem estabelecida, e enquanto não apresentarem, pelo menos aparentemente, nenhum perigo para os poderes constituídos; senão, nada poderia impedir os poderes dominantes de aniquila-las, enquanto forem eles os mais fortes. Para que as novas formas sociais vençam as antigas, é preciso que este desenvolvimento prévio e contínuo as tenha levado a realmente exercer um papel mais importante no funcionamento do organismo social; por outras palavras, que elas tenham suscitado forças superiores às forças com que o poder oficial conta. Assim, nunca há realmente solução de continuidade, nem mesmo quando a transformação do regime parece a conseqüência de uma luta sangrenta; pois então a vitória só consagra as forças que, desde antes da luta, eram o fator decisivo da vida coletiva, formas sociais que haviam começado desde há muito a substituir progressivamente as que serviam de base para o regime em decadência. Foi assim que, no Império Romano, como os bárbaros passassem a ocupar os lugares mais importantes, o exército ia-se dividindo pouco a pouco em bandos sob a direção de aventureiros, e a instituição do colonato substituía progressivamente os escravos pelos servos., tudo isso muito tempo antes das grandes invasões. Da mesma forma, a burguesia francesa não esperou, evidentemente, por 1789 para superar a nobreza. A revolução russa, é verdade, graças a um concurso singular de circunstâncias, pareceu fazer surgir algo de inteiramente novo; mas a verdade é que os privilégios suprimidos por ela não tinham, já havia muito tempo, nenhuma base social fora da tradição; que as instituições surgidas no decorrer da insurreição talvez não tenham efetivamente funcionado nem pelo espaço de uma manhã; e que as forças reais, isto é, a grande indústria, a polícia, o exército, a burocracia, em vez de terem sido abatidas péla revolução, atingiram, graças a ela, um poder que os outros países desconheciam. De uma forma geral essa reviravolta súbita da relação entre as forças, que é o que comumente se entende por revo-[fim da p. 268]lução, não é somente um fenômeno desconhecido na história; é ainda, olhando mais de perto, algo rigorosamente inconcebível, pois seria uma vitória da fraqueza sobre a força, o equivalente de uma balança cujo prato menos pesado se abaixasse, O que a história nos apresenta são transformações lentas de regimes nos quais os acontecimentos sangrentos que batizamos com o nome de revoluções têm um papel muito secundário, e poderiam até estar ausentes; é o que acontece quando a camada social que dominava em nome das antigas relações de força consegue conservar uma parte do poder, favorecida pelas novas relações, e a história da Inglaterra nos dá exemplo disso. Mas, sejam quais forem as formas que tornem as transformações sociais, só se percebe, quando se tenta pôr a nu o seu mecanismo, um triste jogo de forças cegas que se unem ou se chocam, que avançam ou recuam, que se substituem umas às outras, sem parar nunca de esmigalhar sob si os infelizes humanos. Esta engrenagem sinistra não apresenta à primeira vista nenhuma falha por onde possa passar uma tentativa de libertação. Mas não é de um esboço tão vago, tão abstrato, tão miseravelmente sumário que se pode pretender extrair uma conclusão.
E preciso colocar ainda uma vez o problema fundamental, isto é, saber em que consiste o laço que parece até agora unir a opressão social e o progresso nas relações do homem com a natureza. Se considerarmos “a grosso modo” o conjunto do desenvolvimento humano até os nossos dias; se, sobretudo, opusermos os povos primitivos, organizados quase sem desigualdade, à nossa atual civilização, irá parecer que o homem não pode chegar a aliviar o jugo das necessidades naturais sem agravar na mesma proporção o jugo da opressão social, como pelo jogo de um misterioso equilíbrio. E até, coisa ainda mais singular, diríamos que, se a coletividade humana se libertou em ampla medida do peso com que as forças desmedidas da natureza esmagam a fraca humanidade, em troca ela recebeu, de alguma forma, a sucessão da natureza a ponto de esmagar o indivíduo de uma maneira análoga.
Em que o homem primitivo é escravo? E que ele não dispõe quase de sua própria atividade; é um joguete da necessidade, que lhe dita quase todos os gestos, e o espicaça com seu aguilhão impiedoso; e suas ações são regradas, não pelo próprio pensamento, mas pelos costumes e caprichos igualmente incompreensíveis de uma natureza que ele só pode adorar com uma cega submissão. Se só considerarmos a coletividade, aparentemente os homens se elevaram em nossos dias para uma condição que está entre os antípodas desse estado servil. Quase nenhum de seus trabalhos constitui uma sim-[fim da p. 269] pies resposta ao impulso imperioso da necessidade; o trabalho se cumpre de maneira a tomar posse da natureza e a ordená-la de forma que as necessidades se satisfaçam. A humanidade não se crê mais em presença de divindades caprichosas cujo favor seja preciso conciliar; ela sabe que tem simplesmente de manejar a matéria inerte, e cumpre essa tarefa regulando-se metodicamente por leis claramente concebidas. Enfim, parece que chegamos àquela época predita por Descartes, em que os homens usariam “a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros e de todos os outros corpos” da mesma maneira que os ofícios dos artífices, e se tornariam assim senhores da natureza. Mas, por uma estranha reviravolta, essa dominação coletiva se transforma em sujeição assim que se desce à escala do indivíduo, e numa sujeição bastante próxima da que a vida primitiva comporta. Os esforços do trabalhador moderno lhe são impostos por uma coerção tão brutal, tão sem piedade, e que o aperta desde dentro tanto quanto a fome a um caçador primitivo; a partir desse caçador primitivo até o operário de nossas grandes fábricas, passando-se pelos trabalhadores egípcios tratados a chicotadas, pelos escravos antigos, pelos servos da Idade Média constantemente ameaçados pela espada dos senhores, nunca os homens deixaram de ser empurrados ao trabalho por uma força exterior e sob pena de morte quase imediata. Quanto ao encadeamento dos movimentos de trabalho, ele também, muitas vezes, é imposto de fora aos nossos operários assim como aos homens primitivos, e é tão misterioso para uns como para outros; mais ainda, nesse domínio, a pressão é, em certos casos, incomparavelmente mais brutal hoje do que nunca; por mais entregue que um homem primitivo pudesse estar à rotina e aos tateamentos cegos, pelo menos podia tentar refletir, combinar, inovar com seus riscos e perigos, liberdade da qual um trabalhador na linha de montagem está totalmente privado. Finalmente, se a humanidade parece ter chegado a dispor dessas forças da natureza, que, no entanto, segundo Espinosa “ultrapassam infinitamente as do homem”, e isso quase tão soberanamente quanto um cavaleiro dispõe do seu cavalo, essa vitória não pertence aos homens de um em um; só as coletividades maiores estão em condições de manejar “a força e as ações do fogo, da água, do ar... e de todos os outros corpos que nos rodeiam”; quanto aos membros dessas coletividades, opressores e oprimidos estão igualmente submetidos às exigências implacáveis da luta pelo poder.
Assim, apesar do progresso, o homem não saiu da condição servil em que se achava quando estava fraco e nu ao sabor de todas as forças cegas que compõem o universo; apenas, o poder que o mantém de pé foi como que transferido da matéria inerte para a so-[fim da p. 270]ciedade que ele mesmo forma com seus semelhantes. Também é essa sociedade que é imposta à sua adoração através de todas as normas que o sentimento religioso vem tomando sucessivamente. Então, a questão social se coloca sob uma forma bem clara; é preciso examinar o mecanismo dessa transferência; procurar por que o homem teve de pagar a tal preço o seu poder sobre a natureza; conceber em que pode consistir para ele a situação menos infeliz, isto é, aquela em que ele seria menos sujeito à dupla dominação da natureza e da sociedade; finalmente, perceber que caminhos podem conduzir a uma situação como essa, e que instrumentos a civilização poderia fornecer aos homens de hoje, caso eles quisessem transformar a sua vida nesse sentido.
Aceitamos facilmente demais o progresso material como um dom do céu, corno uma coisa que é evidente é preciso olhar de frente as condições à custa das quais ele se realiza. A vida primitiva é algo de fácil compreensão; o homem é pungido pela fome, ou pelo menos pelo pensamento em si lancinante de que será daqui a pouco uma presa da fome, e parte à procura de alimento; treme sob o efeito do frio, ou pelo menos sob o domínio do pensamento de que vai ter frio daí a pouco, e procura coisas boas para criar ou conservar o calor; e assim por diante. Quanto à maneira de agir, primeiro lhe ocorre pelo hábito, desde a infância, imitar os antigos, e também pelos costumes que ele próprio criou, no decorrer de múltiplas tentativas, repetindo procedimentos que tinham dado certo; quando apanhado por um imprevisto, tateia ainda, levado que é a agir em decorrência de uma aguilhoada que não lhe dá descanso. Em tudo isso, o homem só tem de ceder à sua própria natureza, não precisa vencê-la.
Ao contrário, assim que se passa a um estágio mais adiantado da civilização, tudo se torna miraculoso. Vê-se, então, os homens guardando as coisas boas para consumir, as desejáveis, e, no entanto, privando-se delas. Vemo-los abandonar em grande escala a procura do alimento, do calor e do resto, e consagrar o melhor de suas forças em trabalhos aparentemente estéreis. Mais exatamente, esses trabalhos, em sua maioria, nada têm de estéreis, são infinitamente mais produtivos do que os esforços do homem primitivo, pois têm como conseqüência um adestramento da natureza exterior num sentido favorável à vida humana; mas essa eficácia é indireta, e muitas vezes separada do esforço inicial por tantas mediações que o espírito tem dificuldade de percorrê-las; é uma eficácia a longo prazo, tantas vezes tão longo que só as futuras gerações verão seu êxito; ao passo que o cansaço extenuante, as dores, os perigos unidos a esses trabalhos se fazem sentir imediata e permanentemente. Ora, a[fim da p. 271] experiência de cada um lhe repete o quão é raro que a idéia abstrata de uma utilidade longínqua supere as dores, as necessidades, os desejos presentes. E, no entanto, é preciso que ela a supere na existência social, sob pena de volta à vida primitiva.
Mas o que é mais miraculoso ainda é a coordenação dos trabalhos. Todo nível um pouco elevado da produção supõe uma cooperação mais ou menos extensa; e a cooperação se define pelo fato de que os esforço de cada um só têm sentido e eficácia em relação e em exata correspondência com os esforços de todos os outros, de maneira que todos os esforços constituam um único trabalho coletivo. Em outras palavras: os movimentos de vários homens devem-se combinar assim como se combinam os movimentos de um único homem. Mas como fazer isso? Uma combinação só se realiza se for pensada; ora, uma relação só se forma no interior de um espírito. O número dois pensado por um homem não pode ser acrescentado ao número dois pensado por um outro homem para formar o número quatro; da mesma forma, o conceito que um dos cooperadores faz do trabalho parcial que está realizando só pode combinar-se com o conceito que cada um dos outros faz de sua respectiva tarefa para constituir um trabalho coerente. Vários espíritos humanos não se unem num espírito coletivo, e as palavras alma coletiva, pensamento coletivo, tão comumente usadas em nossos dias, são totalmente vazias de sentido. Dai, para que os esforços de vários deles se combinem, é preciso que todos sejam dirigidos por um mesmo e único espírito, como diz o célebre verso de Fausto: “Um espírito basta para mil braços”.
Na organização igualitária dos povos primitivos não há nada que permita resolver qualquer um desses problemas, nem o da privação, nem o do estímulo do esforço, nem o da coordenação dos trabalhos; em troca, a opressão social fornece uma solução imediata criando, para falar grosso modo, duas categorias de homens, os que comandam e os que obedecem. O chefe coordena sem dificuldade os esforços dos homens que estão subordinados às suas ordens; não tem nenhuma hesitação a vencer para reduzi-los ao estritamente necessário; e quanto ao estímulo do esforço, uma organização opressiva é admiravelmente apropriada para fazer os homens galoparem além dos limites de suas forças, uns fustigados pela ambição, outros, como diz Homero, “sob a pressão de uma dura necessidade”.
Os resultados são muitas vezes prodigiosos, quando a divisão das categorias sociais é suficientemente profunda para que quem decide os trabalhos não esteja nunca exposto a sentir nem mesmo a [fim da p. 272] conhecer os desgastes estafantes, nem as dores, nem os perigos, enquanto os que executam e sofrem não têm escolha, ficando continuamente sob a ameaça de um golpe de morte mais ou menos disfarçado. Assim, quando o homem foge até certo ponto dos caprichos de uma natureza cega, entrega-se aos caprichos não menos cegos da luta pelo poder. Isso nunca é tão verdade como quando o homem chega, como é o nosso caso, a uma técnica tão adiantada que lhe dá o domínio das forças da natureza; pois, para que isso aconteça, a cooperação deve existir numa escala tão vasta que os dirigentes acabam tendo em suas mãos um volume enorme de atividades que ultrapassam formidavelmente a sua capacidade de controle. Com isso a humanidade passa a ser joguete das forças da natureza, sob a nova forma que lhe foi dada pelo progresso técnico, muito mais do que nos tempos primitivos; tivemos, temos e teremos disso a amarga .experiência. Quanto às tentativas de se conservar a técnica sacudindo a opressão, elas suscitam imediatamente tamanha preguiça e tamanha desordem que os que se lançaram na iniciativa se acham, em sua maioria, obrigados a repor quase imediatamente a cabeça sob o jugo; a experiência foi feita em pequena escala nas cooperativas de produção, em vasta escala na Revolução Russa. Pareceria que o homem teria nascido escravo e que a servidão seria a sua própria condição.
Quadro teórico de uma sociedade livre
Entretanto, nada neste mundo pode impedir o homem de se sentir nascido para a liberdade. Nunca, aconteça o que acontecer, ele pode aceitar a servidão, porque ele pensa. Nunca deixou de sonhar com uma liberdade sem limites, seja como uma felicidade passada da qual um castigo o teria privado, seja como uma felicidade vindoura que lhe seria devida por uma espécie de pacto com uma providência misteriosa. O comunismo imaginado por Marx é a mais recente forma desse sonho. Esse sonho sempre foi vão, como todos os sonhos, ou, caso console, foi só como o ópio; já é tempo de renunciar a sonhar com a liberdade e de se decidir a concebê-la.
Ë a liberdade perfeita que é preciso que nos esforcemos por representar com clareza, não na esperança de atingi-la, mas na esperança de atingir uma liberdade menos imperfeita, que é a nossa atual condição; pois só através do perfeito se pode conceber o melhor. Não nos podemos dirigir senão para um ideal. O ideal é tão irrealizável quanto o sonho, mas, ao contrário do sonho, ele tem rela-[fim da p. 273]ção com a realidade; permite, na qualidade de limite, que organizemos situações reais ou realizáveis na ordem do menor ao mais alto valor. A liberdade perfeita não pode ser concebida como se consistisse simplesmente no desaparecimento dessa necessidade cuja pressão suportamos continuamente; enquanto o homem viver, isto é, enquanto ele for um ínfimo fragmento deste universo sem piedade, a pressão da necessidade não se afrouxará nunca um só momento. Um estado de coisas, no qual o homem tivesse tantos prazeres e tão poucos cansaços quantos quisesse, não pode acontecer senão por ficção no mundo em que vivemos. Ê a natureza, em verdade, mais clemente ou mais severa com as necessidades humanas, conforme os climas e talvez conforme as épocas; mas esperar a invenção milagrosa que a tornasse clemente em todos os lugares e para sempre, é mais ou menos tão razoável quanto as esperanças que outrora se projetavam na data do ano mil. De resto, se examinarmos essa ficção de perto, veremos que ela não vale nem uma saudade. Basta olhar para a franqueza humana para se compreender que uma vida da qual a própria noção do trabalho tivesse quase desaparecido seria entregue às paixões e, talvez, à loucura; não há autodomínio sem disciplina, e não há outra fonte de disciplina para o homem senão o esforço exigido pelos obstáculos exteriores. Um povo de ociosos poderia divertir-se bem criando obstáculos, exercitando-se nas ciências, nas artes, nos jogos; mas os esforços que procedem só da fantasia não constituem para o homem um meio de dominar suas próprias fantasias. São os obstáculos contra os quais nos chocamos, e que temos de vencer, que fornecem a oportunidade para vencermos a nós mesmos. Até as atividades aparentemente mais livres, ciência, arte, esporte, só têm valor enquanto imitam a exatidão, o rigor, o escrúpulo próprios dos trabalhos, e até os exageram. Sem o modelo que, sem o saber, lhes fornecem o lavrador, o ferreiro, o marinheiro que trabalham como é necessário — usemos essa expressão de uma admirável ambigüidade — essas atividades naufragariam no despotismo puro. A única liberdade que é possível atribuir à idade de ouro é a liberdade que as criancinhas teriam, se os pais não lhes impusessem regras; é verdade que ela não passa de uma submissão incondicionada ao capricho, O corpo humano não pode deixar, hora nenhuma, de depender do poderoso universo no qual se insere; mesmo que o homem deixasse de estar submetido às coisas e aos outros homens pelas necessidades e perigos, ainda lhes estaria muito mais completamente entregue pelas emoções que lhe agitariam continuamente as entranhas, sem que nenhuma atividade regular o defendesse mais. Se tivéssemos de entender por liberdade a simples ausência de toda necessidade, essa palavra seria vazia de [fim da p. 274] toda significação concreta; mas não representaria, então, para nós aquilo que tira o valor da vida quando nos é usurpado.
Pode-se entender como liberdade algo diverso da possibilidade de se obter sem esforço o que agrada. Existe um conceito bem diferente de liberdade, um conceito heróico que é o da sabedoria comum. A verdadeira liberdade não se define como uma relação entre o desejo e a satisfação, mas como uma relação entre o pensamento e a ação; seria totalmente livre o homem cujas ações, todas elas procedessem de um juízo prévio sobre o fim que ele se propõe e o encadeamento dos meios próprios que levam à esse fim. Pouco importa que as ações em si mesmas sejam fáceis ou dolorosas, e até pouco importa que elas tenham êxito; a dor e o insucesso podem tornar o homem infeliz, mas não podem humilhá-lo enquanto for ele próprio quem dispõe de sua faculdade de agir. E dispor de suas próprias ações não significa de forma alguma agir arbitrariamente; as ações arbitrarias não procedem de nenhum juízo, e não podem com exatidão ser chamadas de livres. Todo juízo se volta para uma situação objetiva, e, conseqüentemente, para uma trama de necessidades. O homem vivo não pode, em caso algum, parar de ser comprimido por todos os lados por uma necessidade totalmente inflexível; mas como ele pensa, tem a escolha entre ceder cegamente ao aguilhão pelo qual ela o empurra de fora, ou então, conformar-se com a representação interior que ele cria; é nisso que consiste a oposição entre servidão e liberdade. Os dois termos dessa oposição, aliás, não são mais senão limites ideais entre os quais se move a vida humana sem nunca atingir nenhum, caso em que deixaria de ser vida. Um homem seria completamente escravo se todos os seus gestos procedessem de uma outra fonte diversa do seu pensamento, a saber, as reações irracionais do corpo ou o pensamento de outrem; o homem primitivo faminto, cujos saltos são provocados pelos espasmos que retorcem suas entranhas, o escravo romano continuamente voltado para as ordens dum feitor com um chicote, o operário moderno que trabalha em linha de montagem. se aproximam dessa miserável condição. Quanto à liberdade completa, pode-se encontrar um modelo abstrato num problema de aritmética ou de geometria bem resolvido; pois, num problema, todos os elementos da solução estão dados, e o homem não pode esperar auxílio senão de seu próprio juízo, o único capaz de estabelecer entre esses elementos a relação que constitui por si mesma a solução procurada. Os esforços e as vitórias da matemática não ultrapassam o quadro da folha de papel, reino dos sinais e dos desenhos; uma vida inteiramente livre seria aquela em que todas as dificuldades se apresentas-[fim da p. 275] sem como esses problemas, nos quais iodas as vitórias seriam como soluções em ação. Todos os elementos do êxito estariam então dados, isto é, conhecidos e manipuláveis, como são os signos do matemático; para se obter o resultado desejado, bastaria colocar esses elementos em relação graças à direção metódica que o pensamento imprimiria, não mais com simples riscos de pena, mas com movimentos efetivos que deixariam sua marca no mundo. Mais exatamente, o cumprimento de qualquer obra seria uma combinação de esforços tão consciente e tão metódica quanto pode ser a combinação de cifras com a qual se opera a solução de um problema quando ela procede da reflexão. O homem teria então constantemente seu próprio destino entre as mãos; forjaria a. cada momento as condições de sua própria existência com um ato do pensamento. O simples desejo, é verdade, não o levaria a nada; ele não receberia nada gratuitamente; e até as possibilidades de esforço eficaz seriam para ele estreitamente limitadas. Mas o fato em si de não poder obter nada sem ter acionado, para conquistá-lo, todos os poderes do pensamento e do corpo permitiria ao homem arrancar-se, sem retorno, do domínio cego das paixões. Uma visão clara do possível e do impossível, do fácil e do difícil, das dificuldades que separam o projeto da realização, faz, sozinha, desaparecerem os desejos insaciáveis e os medos vãos; é dai, e não de nenhuma outra fonte, que procedem a temperança e a coragem, virtudes sem as quais a vida é apenas um vergonhoso delírio. Além disso, toda espécie de virtude tem a sua fonte no encontro que faz o pensamento embater a uma matéria sem indulgência e sem perfídia. Não se pode imaginar nada maior para o homem do que um destino que o coloque diretamente no embate com a necessidade nua, sem que tenha nada a esperar senão de si mesmo, e de tal forma que a sua vida seja uma perpétua criação de si mesmo por si mesmo. O homem é um ser limitado a quem não é dado ser como o Deus dos teólogos, o autor direto de sua própria existência; mas o homem possuiria o equivalente humano desse poder divino, se as condições materiais que lhe permitem a existência fossem exclusivamente a obra de seu pensamento dirigindo o esforço de seus músculos. Essa seria a verdadeira liberdade.
Essa liberdade não é senão um ideal, e não pode também encontrar-se numa situação real assim como a reta perfeita, que não pode ser traçada com o lápis. Mas esse ideal será útil para conceber se podemos perceber ao mesmo tempo o que nos separa dele, e que circunstâncias nos podem afastar ou aproximar dele. O obstáculo que aparece em primeiro lugar é a complexidade e a extensão deste mundo com que lidamos, complexidade e extensão que ultrapassam [fim da p. 276] infinitamente o alcance de nosso espírito. As dificuldades da vida real não são problemas dentro das nossas medidas. Parecem-se com problemas cujos dados fossem em quantidade inumerável, pois a matéria é duplamente indefinida em relação à extensão e à divisibilidade. Por isso é impossível para um espírito humano abranger todos os fatores dos quais depende o êxito da ação aparentemente mais simples; seja qual for a situação, há margem para inúmeros acasos, e as coisas fogem do nosso pensamento como fluidos que quiséssemos pegar com os dedos. Então pareceria que o pensamento só se pode exercer em vãs combinações de dignos e que a ação se deve reduzir ao mais cego tateamento. Mas, de fato, não é assim. É claro que nunca podemos agir com todas as garantias; mas isso não importa tanto como poderíamos acreditar. Podemos facilmente suportar que as conseqüências de nossas ações dependam de acasos incontroláveis, o que precisamos a qualquer preço retirar do acaso são as nossas próprias ações, e isso de maneira a submetê-las à direção do pensamento. Basta para isso que o homem possa imaginar uma corrente de intermediários que unam os movimentos de que ele é capaz aos resultados que ele quer obter; e muitas vezes ele o pode, graças à estabilidade relativa que persiste, através dos movimentos cegos do universo, na escala do organismo humano, e que éa única a permitir que esse organismo subsista. E claro que essa corrente de intermediários não constitui nunca senão um esquema abstrato; quando se passa à execução, podem a cada instante intervir acidentes para desviar os planos mais bem montados; mas se a inteligência soube elaborar claramente o plano abstrato da ação a executar, isso quer dizer que ela conseguiu não, é claro, eliminar o acaso, mas deixar-lhe uma margem circunscrita e limitada, e, por assim dizer, filtrá-lo, classificando em relação a esse plano a massa indefinida dos acidentes possíveis em algumas séries bem determinadas. Assim, o espírito não tem poder para se reconhecer nos inúmeros torvelinhos que formam o vento e a água em alto mar; mas, uma vez colocado em meio a esses torvelinhos um barco, cujas velas e leme estejam dispostos de uma ou de outra maneira, pode-se fazer a lista das ações que eles lhe podem fazer sofrer. Todos os instrumentos são, digamos assim, de uma forma mais ou menos perfeita, instrumentos para definir os acasos. O homem poderia dessa forma eliminar o acaso, senão à sua volta, pelo menos dentro de si mesmo; entretanto, até isso é um ideal inacessível. O mundo é fertil demais em situações cuja complexidade nos ultrapassa para que o instinto, a rotina, o tateamento, a improvisação nunca possam deixar de exercer um papel em nossos trabalhos; o homem só pode restringir [fim da p. 277] cada vez mais esse papel graças aos progressos da ciência e da técnica, O que importa é que esse papel seja subordinado e não impeça o método de constituir a própria alma do trabalho. É preciso, também, que o consideremos provisório, e que rotina e tateamento sejam sempre considerados, não como princípios de ação, mas como mal menor destinado a preencher as lacunas do pensamento metódico; nisso as hipóteses científicas nos ajudam poderosamente, porque nos fazem conceber os fenômenos semiconhecidos como regidos por leis análogas às que determinam os fenômenos mais claramente compreendidos. E mesmo onde não sabemos de nada ainda, podemos supor que se apliquem essas leis; isso basta para eliminar, a despeito da ignorância, o sentimento do mistério, e nos fazer compreender que vivemos num mundo no qual o homem deve esperar milagres apenas de si mesmo.
Entretanto, há uma fonte de mistério que não podemos eliminar, e é o nosso próprio corpo. A extrema complexidade dos fenômenos vitais pode, talvez, ser progressivamente esclarecida, pelo menos em uma certa medida; mas uma sombra impenetrável rodeará sempre a relação imediata que liga, nossos pensamentos a nossos movimentos. Nesse domínio não podemos conceber nenhuma necessidade pelo próprio fato de que não podemos determinar os elos intermediários; além do que, a noção de necessidade, tal’como o pensamento humano a formula, não é propriamente aplicável senão à matéria. Não se pode nem sequer encontrar nos fenômenos em questão, por falta de uma necessidade claramente concebível, uma regularidade, mesmo aproximada. Por vezes, as reações do corpo vivo são completamente estranhas ao pensamento; por vezes, mas raramente, elas executam simplesmente as suas ordens; a maioria das vezes, elas cumprem o que a alma desejou sem que esta em nada participe; por vezes, também, acompanham os desejos formulados pela alma sem lhes corresponder de forma alguma; outras vezes, ainda, elas precedem aos pensamentos. Nenhuma classificação é possível. Ë por isso que, quando os movimentos do corpo vivo têm o primeiro lugar na luta contra a natureza, a própria noção de necessidade dificilmente pode constituir-se; em caso de êxito, a natureza parece obedecer ou agradar imediatamente aos desejos, e, em caso de insucesso, recusá-los. É o que acontece nos atos realizados, seja sem instrumentos seja com instrumentos tão bem adaptados aos membros vivos que eles só lhes prolongam os movimentos naturais. Pode-se compreender assim que os primitivos, apesar de sua extrema habilidade para realizar tudo o de que necessitam para subsistir, imaginam a relação entre o homem e o mundo sob o as-[fim da p. 278]pecto, não do trabalho, mas da magia. Entre eles e a trama de necessidades que constitui a natureza e define as reais condições da existência, se interpõe desde então, como uma tela, toda espécie de caprichos misteriosos à mercê dos quais eles julgam encontrar-se; e, por menos opressiva que possa ser a sociedade que constituem, não deixam de ser escravos em relação a esses caprichos imaginários, muitas vezes, aliás, interpretados por sacerdotes e feiticeiros de carne e osso. Essas crenças sobrevivem em forma de superstições, e, ao contrário do que nos agrada pensar, nenhum homem está completamente livre delas; mas o seu poder perde força à medida que, na luta contra a natureza, o corpo vivo passa para segundo plano e os instrumentos inertes para o primeiro. Isso acontece quando os instrumentos, deixando de se modelarem pela estrutura do organismo humano, o obrigam, ao contrário, a adaptar seus movimentos à forma deles. A partir de então, não há mais nenhuma correspondência entre os gestos a executar e as paixões; o pensamento precisa subtrair-se ao desejo e ao medo, e aplicar-se unicamente em estabelecer uma relação exata entre os movimentos impressos nos instrumentos e a finalidade perseguida. A docilidade do corpo em tal caso é uma espécie de milagre, mas um milagre no qual o pensamento não entra afinal de contas; o corpo, tornado como que fluido pelo hábito, conforme a bela expressão de Hegel, faz simplesmente passar para os instrumentos os movimentos concebidos pelo espírito. A atenção se volta exclusivamente para as combinações formadas pelos movimentos da matéria inerte, e a noção de necessidade surge em sua pureza, sem nenhuma mistura de magia. Por exemplo, em terra, e levado pelos desejos e medos que movem suas pernas em lugar dele, o homem muitas vezes passou de um lugar para outro sem saber como; no mar, ao contrário, como os desejos e os medos não têm poder sobre o barco, é preciso continuamente maquinar e ordenar, dispor velas e leme, transformar o empuxe do vento por um encadeamento de artifícios que só podem ser obra de um pensamento_ lúcido. Não se pode reduzir inteiramente o corpo humano a esse papel de intermediário dócil entre o pensamento e os instrumentos, mas podemos ir reduzindo-o cada vez mais; é para isso que contribui cada progresso da técnica.
Mas, por infelicidade, mesmo que se chegasse a submeter estritamente e até o último detalhe todos os trabalhos, sem exceção, ao pensamento metódico, um novo obstáculo para a liberdade surgiria imediatamente, por causa da profunda diferença de natureza que separa a especulação teórica e a ação. Na verdade, não há nada de comum entre a resolução de um problema e a execução de um tra-[fim da p. 279]balho mesmo perfeitamente metódico, entre o encadeamento das noções e o encadeamento dos movimentos. Quem se lança numa dificuldade de ordem teórica procede indo do simples para o complexo, do claro para o obscuro; já os movimentos do trabalhador não são, por si, uns mais simples ou mais claros que os outros, mas simplesmente, os que precedem são a condição dos que se seguem. Por outro lado, o pensamento reúne quase sempre o que a execução deve separar, ou separa o que a execução deve unir. Por isso, quando um trabalho qualquer apresenta ao pensamento dificuldades que no momento são insuperáveis, é impossível unir o exame dessas dificuldades e a execução do trabalho; o espírito deve resolver em primeiro lugar o problema teórico por seus processos próprios e depois a solução pode ser aplicada à ação. Não se pode dizer nesse caso que a ação seja exatamente metódica; ela está dentro do método, o que é bem diferente. A diferença é capital; pois quem aplica o método não precisa concebê-lo no momento de aplicar. Mais ainda, se surgirem coisas complicadas, torna-se impossível, mesmo que ele próprio o tivesse elaborado; pois a atenção, sempre obrigada a voltar-se para o momento presente da execução não pode abranger ao mesmo tempo o encadeamento de relações de que depende o conjunto da execução. Então, o que está executado não é um pensamento, é um esquema abstrato que indica uma seqüência de movimentos, e também pouco penetrável para o espírito, no ato da execução, da mesma forma que uma receita devida à simples rotina ou a um rito mágico. Aliás, uma só e única concepção é aplicável, com ou sem modificações de detalhe, um número indefinido de vezes; pois, embora o pensamento cubra com um só golpe de vista a série das aplicações possíveis de um método, o homem não fica dispensado, por isso, de realizá-las de uma a uma sempre que for necessário. Assim, a um único lampejo de pensamento corresponde uma quantidade ilimitada de ações cegas. Nem é preciso dizer que quem reproduz indefinidamente a aplicação deste ou daquele método de trabalho nunca se deu ao trabalho de compreendê-lo; além do que acontece freqüentemente que cada um só esteja encarregado de uma parte da execução, sempre a mesma, enquanto seus companheiros fazem o resto. A partir de então estamos em presença de uma situação paradoxal; a saber, que há método nos movimentos do trabalho, mas não no pensamento do trabalhador. Dir-se-ia que o método transferiu sua sede do espírito para a matéria. Ë disso que as máquinas automáticas nos dão a imagem mais eloqüente. A partir do momento em que o pensamento, que elaborou um método de ação, não precisa intervir na execução, tanto se pode confiar essa [fim da p. 280] execução a pedaços de metal — talvez com muito mais vantagens —quanto a membros vivos; e estamos, assim, diante do estranho espetáculo de máquinas no qual o método se cristalizou tão perfeitamente em metal que parece que são elas que pensam, e os homens atados a seu serviço é que estão reduzidos ao estado de autômatos. De mais a mais, esta oposição entre a aplicação e a inteligência do método se encontra, inteiramente idêntica, no próprio quadro da pura teoria. Tomando um exemplo simples, é inteiramente impossível, no momento em que se faz uma divisão difícil, ter a teoria da divisão presente ao espírito; e isso não apenas porque essa teoria, que tem sua base na relação entre a divisão e a multiplicação, é de uma certa complexidade, mas sobretudo porque, executando cada uma das operações parciais ao fim das quais a divisão se realiza, se esquece que as cifras representam ora unidades, ora dezenas, ora centenas. Os signos se combinam dentro das leis das coisas que significam; mas, por falta de poder conservar a relação signo-significado continuamente presente ao espírito, manejamo-los como se eles se combinassem dentro de suas próprias leis; e por isso as combinações se tornam ininteligíveis, o que quer dizer que elas se realizam automaticamente. O caráter maquinal das operações aritméticas é ilustrado pela existência de máquinas de calcular; mas um contador também não é mais do que uma máquina de calcular imperfeita e infeliz. A matemática só progride trabalhando com signos, alargando o seu significado, criando signos de signos; assim as letras correntes da álgebra representam quaisquer quantidades, ou mesmo operações virtuais, como é o caso dos valores negativos; outras letras representam as funções algébricas, e assim por diante. Como em cada plano, por assim dizer, se chega inevitavelmente a perder de vista a relação signo-significado, as combinações de signos, embora sempre rigorosamente metódicas, tornam-se depressa impenetráveis ao pensamento. Não há máquina algébrica satisfatória, embora várias tentativas tenham sido feitas nesse sentido; mas os cálculos algébricos não são, na maioria das vezes, tão automáticos quanto o trabalho do contador. Ou melhor, eles o são mais, no sentido de que o são, de alguma forma, essencialmente. Depois de ter feito uma divisão, sempre se pode refletir a respeito, devolvendo aos signos o seu significado até compreender o porquê de cada parte da operação; mas com a álgebra não acontece o mesmo, nela os signos, à custa de serem manejados e combinados entre si como signos, acabam por dar prova de uma eficácia que não se traduz em seu significado. Por exemplo, os signos e e i; se manejados convenientemente, aplainam-se maravilhosamente todas as espécies de [fim da p. 281] dificuldades, principalmente se os combinarmos de uma certa forma com que, chega-se à afirmação de que a quadratura do círculo é impossível; entretanto, nenhum espírito no mundo entende que relação as quantidades, se lhes pudermos dar esse nome, que designam estas letras, podem ter com o problema da quadratura do círculo. O cálculo coloca os signos em relação no papel, sem que os objetos significados estejam em relação no espírito; de forma que a questão mesma da significação dos signos acaba por não querer dizer nada. Vemos, então, que resolvemos um problema por uma espécie de magia, sem que o espírito tenha relacionado os dados e a solução. A partir daí, então, como no caso da máquina automática, o método parece ter por domínio as coisas em vez do pensamento; só que, no caso, as coisas não são pedaços de metal, mas traços sobre papel branco. Por isso, um cientista pôde dizer: “Meu lápis sabe mais do que eu.” É evidente que a matemática superior não é um mero produto do automatismo, e que o pensamento, e mesmo o gênio, tiveram e têm a sua parte na elaboração; daí resulta uma extraordinária mistura de operações cegas com lampejos de pensamento; mas, onde o pensamento não domina tudo, representa necessariamente um papel subordinado. E quanto mais o progresso da ciência acumula as combinações inteiramente feitas de signos, tanto mais o pensamento fica esmagado, incapaz de fazer o inventário das noções que manipula. Bem entendido a relação das fórmulas assim elaboradas com as aplicações práticas de que são suscetíveis é também muitas vezes totalmente impenetrável para o pensamento, e por isso parece tão fortuita quanto a eficácia de uma fórmula mágica. O trabalho nesse caso é automático, por assim dizer, na segunda potência; não é somente a execução, é também a elaboração do método de trabalho que se cumpre sem ser dirigida pelo pensamento. Poderíamos conceber, na qualidade de limite abstrato, uma civilização na qual toda a atividade humana, tanto no domínio do trabalho como no da especulação teórica, fosse submetida em todas as minúcias a um rigor inteiramente matemático, e isso sem que nenhum ser humano compreendesse fosse o que fosse do que estava fazendo; a noção de necessidade estaria então ausente de todos os espíritos, e isso com uma radicalidade diferente da dos povos primitivos que, segundo nossos sociólogos, ignoram a lógica.
Por oposição, o único modo de produção plenamente livre seria aquele em que o pensamento metódico estivesse em ação no decorrer do trabalho. As dificuldades a vencer deveriam ser tão variadas de sorte que nunca fosse possível aplicar regras já feitas; não, bem entendido, que o papel dos conhecimentos adquiridos deva ser nulo; mas é preciso que o trabalhador seja obrigado a conservar [fim da p. 282] sempre presente no espírito a concepção diretriz do trabalho que executa, de forma a poder aplicá-la inteligentemente em casos particulares sempre novos. Uma presença de espírito como essa tem naturalmente como condição que esta fluidez do corpo que o hábito e a habilidade produzem atinja um grau muito alto. É preciso também que todas as noções utilizadas no decorrer do trabalho sejam luminosas, o bastante para poderem ser evocadas globalmente num piscar de olhos; dependendo da flexibilidade maior ou menor da inteligência, e, mais ainda, do caminho mais ou menos reto pelo qual uma noção se formou no espírito, é que a memória poderá conservar a noção própria ou apenas a fórmula que lhe servia de envoltório. Ê evidente que o grau de complicação das dificuldades a resolver nunca deverá ser elevado demais, sob pena de estabelecer um corte entre o pensamento e a ação. Bem entendido, um ideal desses não poderá nunca ser plenamente, realizável; não se pode evitar, na vida prática, agir sem que seja possível compreender as ações no momento mesmo em que são realizadas, sendo preciso fiar-se em regras já estabelecidas, ou no instinto, na improvisação, na rotina. Mas pode-se, pelo menos alargar pouco a pouco o domínio do trabalho lúcido, e isso talvez indefinidamente. Bastaria para tanto que o homem tivesse em mira, não mais estender indefinidamente SCUS conhecimentos e seu poder, mas, de preferência, instaurar, tanto no estudo quanto no trabalho, um certo equilíbrio entre o espírito e o objeto ao qual se aplica o espírito.
Mas existe ainda um outro fator de servidão; é, para cada um, a existência dos outros homens. Prestando bem atenção, é exatamente o único fator de servidão; s6 o homem pode subjugar o homem. Os próprios primitivos não’ seriam escravos da natureza se não alojassem nela seres imaginários análogos ao homem, e cujas vontades, aliás, são interpretadas pelos homens. Nesse caso, como em todos os outros, é o mundo exterior que é a fonte do poder; mas, se por detrás das forças infinitas da natureza não houvesse, imaginadas ou reais, vontades divinas ou humanas, a natureza poderia quebrar o homem, mas não humilhá-lo. A matéria pode desmentir as previsões e arruinar os esforços e mesmo assim continua a ser inerte, concebida e manejada a partir do exterior; em compensação não se pode nunca penetrar ou manejar de fora o pensamento humano. Na medida em que o destino de um homem depende de outros homens, a própria vida lhe escapa, não só das mãos, como também da inteligência; O juízo e a decisão não têm mais nada a que se aplicar; em vez de ordenar e agir, é preciso rebaixar-se para suplicar ou para ameaçar; e a alma cai nos abismos sem fundo do desejo e do temor, pois não há limites para as satisfações e para os sofri-[fim da p. 283]mentos que um homem pode receber dos Outros homens. Essa dependência aviltante não é a realidade dos oprimidos apenas, mas, com o mesmo valor embora de maneira diferente, dos oprimidos e dos poderosos. Como o homem poderoso só vive de seus escravos, a existência de um mundo inflexível lhe escapa quase inteiramente; suas ordens lhe parecem conter em si mesmas uma eficácia misteriosa; ele não e capaz, exatamente, de querer, mas é presa de desejos aos quais a visão clara da necessidade nunca vem trazer um limite. Como não concebe outro método de ação a não ser comandar, quando lhe acontece, como é inevitável, comandar em vão, passa, de repente, do poder absoluto ao sentimento de uma impotência radical, como tantas vezes acontece nos sonhos; e os temores são então tanto mais acabrunhantes quanto mais ele sente continuamente sobre si a ameaça de seus rivais. Quanto aos escravos, estes estão continuamente em luta com a matéria; só que o seu destino depende, não dessa matéria com que lidam, mas dos senhores, cujos caprichos não conhecem leis nem limites.
Mas seria ainda pouco depender de seres que, embora estranhos, são pelo menos reais, e que podemos, senão penetrar, ao menos ver, ouvir, adivinhar por analogia com nós mesmos. Na verdade, em todas as sociedades opressivas, todo homem, seja qual for o nível em que se encontre, depende não só dos que estão acima ou abaixo dele, mas, antes de mais nada, do próprio jogo da vida coletiva, jogo cego que determina por si só as hierarquias sociais; e pouco importa, a esse respeito, que o poder deixe transparecer a sua origem essencialmente coletiva, ou então pareça situar-se em certos indivíduos determinados com a virtude dormitiva do ópio. Ora, se ha no mundo algo absolutamente abstrato, inteiramente misterioso, inacessível aos sentidos e ao pensamento, é a coletividade; o indivíduo que é membro dela não pode, ao que parece, atingi-la nem apanhá-la por nenhuma artimanha, pesar sobre ela com nenhuma alavanca; ele se sente diante dela na ordem do infinitamente pequeno. Se os caprichos de um indivíduo aparecem a todos os outros como arbitrários, os trancos da vida coletiva parecem sê-lo na segunda potência. Assim, entre o homem e este universo que lhe é assinalado pelo destino como a única matéria de seu pensamento e de sua ação, as relações de opressão e de servidão colocam de uma forma permanente a tela impenetrável do arbítrio humano. Como estranhar, se em vez de idéias só aparecem opiniões, em vez de ação uma agitação cega? Não se poderia imaginar a possibilidade de um progresso, qualquer no único sentido verdadeiro dessa palavra, na ordem dos valores humanos, a menos que se pudesse conceber, [fim da p. 284] como limite ideal, uma sociedade que armasse o homem contra o mundo sem o separar dele.
Assim como o homem não foi feito para ser joguete de uma natureza cega, não foi feito para ser o joguete das coletividades cegas que ele forma com seus semelhantes; mas, para não se entregar à sociedade tão passivamente quanto uma gota de água no mar, seria preciso que ele pudesse conhecê-la e agir sobre ela. Em todos os domínios, é verdade, as forças coletivas ultrapassam infinitamente as forças individuais; não é mais fácil imaginar um individuo dispondo realmente de uma porção da vida coletiva, do que uma linha alongando-se com o acréscimo de um ponto. Pelo menos é o que parece; mas, na verdade, há uma exceção — uma única — a saber: o domínio do pensamento. No que diz respeito ao pensamento, a relação se inverte; aí o indivíduo ultrapassa a coletividade como o algo ultrapassa o nada, pois o pensamento só se forma num espírito que se acha só, diante de si mesmo; as coletividades não pensam. É verdade que o pensamento não constitui de forma alguma força por si mesmo. Arquimedes foi morto, dizem, por um soldado bêbado; e, se o tivessem posto a girar a mó debaixo do chicote de um feitor, ele teria girado exatamente como o mais grosseiro dos homens. Na medida em que o pensamento plana acima do conjunto social, ele pode julgar, mas não transformar. Todas as forças são materiais; a expressão de força espiritual é essencialmente contraditória; o pensamento só pode ser uma força na medida em que for materialmente indispensável. Para exprimir a mesma idéia sob um outro aspecto, o homem nada tem de essencialmente individual, nada tem que lhe seja inteiramente próprio, a não ser a faculdade de pensar; e essa sociedade, de que depende estreitamente a cada momento de sua existência, depende, em compensação, um pouco dele, a partir do momento em que ela precisa que ele pense. Pois tudo o mais pode ser imposto de fora pela força, inclusive os movimentos do corpo, mas nada no mundo pode obrigar um homem a exercer seu poder de pensamento, nem subtrair-lhe o controle de seu próprio pensamento. Se for preciso que um escravo pense, é melhor largar o chicote; senão, vão ser poucas as possibilidades de conseguir resultados de boa qualidade. Por isso, se o que se quer é formar, de um modo puramente teórico, o conceito de uma sociedade na qual a vida coletiva seja submetida aos homens considerados como indivíduos, em vez de submetê-los, é preciso apelar para uma forma de vida material na qual só interviriam esforços exclusivamente dirigidos pelo pensamento claro, o que implicaria que cada trabalhador tivesse de controlar pessoalmente sem se dirigir a nenhuma lei exte-[fim da p.285]rior, não apenas a adaptação de seus esforços à obra a produzir, mas também a sua coordenação com os esforços de todos os outros membros da coletividade. A técnica deveria ser de tal natureza que pusesse incessantemente em ação a reflexão metódica; a analogia entre as técnicas dos diversos trabalhos deveria ser muito estreita e a cultura técnica muito extensa para que cada trabalhador tivesse uma idéia nítida de todas as especialidades; a coordenação deveria estabelecer-se de uma forma bem simples para que cada um tivesse constantemente o conhecimento preciso dela, tanto no que diz respeito à cooperação dos trabalhadores quanto às trocas de produtos; as coletividades nunca seriam tão extensas que ultrapassassem o alcance de um espírito humano; a comunhão dos interesses seria evidente o bastante para apagar as rivalidades; e como cada indivíduo estaria em condições de controlar o conjunto da vida coletiva, esta seria sempre conforme com a vontade geral. Os privilégios fundados na troca de produtos, nos segredos da produção ou na coordenação dos trabalhos ficariam automa¬ticamente abolidos. A função de coordenar não implicaria mais nenhum poder, já que um controle contínuo exercido por cada um tornaria impossível qualquer decisão arbitrária. De uma forma geral, a mútua dependência dos homens não implicaria mais que seu destino ficasse entregue ao arbitrário, e deixaria de introduzir na vida humana fosse o que fosse de misterioso, visto que cada um estaria em condições de controlar a atividade de todos os outros apelando somente para a sua razão. Só há uma única e mesma razão para todos os homens; eles só se tornam estranhos e impenetráveis uns para os outros quando se afastam dela; assim, uma sociedade na qual toda a vida material tivesse como condição necessária e suficiente que cada um exercesse sua razão, poderia ser inteiramente transparente para cada espírito. Quanto ao estímulo necessário para vencer as fadigas, as dores e os perigos, cada um o encontraria no desejo de alcançar a estima de seus companheiros, porém, mais ainda em si mesmo; quanto aos trabalhos que são criações do espírito, a pressão exterior, tornada inútil e nociva, seria substituída por uma espécie de pressão interior; o espetáculo da obra inacabada atrai o homem livre com tanta força quanto o chicote empurra o escravo. Só uma sociedade como essa seria uma sociedade de homens livres, iguais e irmãos. Os homens cairiam, por assim dizer, nos laços coletivos, mas exclusivamente em sua qualidade de homens; nunca seriam tratados como coisas uns pelos outros. Cada um veria em cada companheiro de trabalho um outro eu mesmo colocado em um outro posto, e o amaria como pede a máxima evangélica. Assim possuiríamos, além da liberdade, um bem ainda mais precioso; pois se nada há mais [fim da p. 286] odioso do que a humilhação e o aviltamento do homem pelo homem, nada é tão belo nem tão doce quanto a amizade.
Este quadro, considerado em si mesmo, está, pode-se dizer, mais longe ainda das condições reais da vida humana que a ficção da idade de ouro. Mas, ao contrário dessa ficção, pode servir como ideal, como ponto de referência para a análise e a apreciação das formas sociais reais. O quadro de uma vida social inteiramente opressiva, submetendo todos os indivíduos ao jogo de um mecanismo cego, também era puramente teórico; a análise que situasse uma sociedade em relação a estes dois quadros encerraria já a realidade com mais proximidade, embora permanecendo muito abstrata, assim, um novo método de análise social que não é a de Marx, embora parta, como Marx queria, das relações de produção; mas, ao passo que Marx, cuja concepção fica aliás pouco precisa nesse ponto, parece ter desejado enfileirar os modos de produção em função do rendimento, nós os analisaríamos em função das relações entre o pensamento e a ação. Ë óbvio que um ponto de vista como esse de forma alguma implica que a humanidade tenha evoluído, no decorrer da história, das formas menos conscientes para as formas mais conscientes da produção; a noção de progresso é indispensável para quem procura forjar de antemão o futuro, mas só confunde o espírito quando se estuda o passado. E preciso, então, substitui-la pela noção de uma escala de valores concebida fora do tempo; entretanto, não é tampouco possível dispor as diversas formas sociais em série numa escala como essa. O que se pode fazer, é relacionar com uma escala semelhante este ou aquele aspecto da vida social considerada em determinada época. Fica bastante claro que os trabalhos diferem realmente entre si por algo que não se refere nem ao bem-estar nem ao lazer, nem à segurança, e que, no entanto, está no coração de todo homem; um pescador que luta contra as ondas e o vento em seu barquinho, embora sofra com o frio e o cansaço, com a falta de lazer e até de sono, com o perigo, com um nível de vida primitivo, tem um destino mais invejável que o operário que trabalho em linha de montagem, no entanto, mais bem atendido em quase todos esses pontos. E que o seu trabalho parece muito mais o trabalho de um homem livre, embora a rotina e a improvisação cega tenham nele uma parte por vezes bem ampla. O artesão da Idade Média também ocupa, sob este ponto de vista, um lugar muito honroso, embora o “jeito da mão”, que é tão importante em todos os trabalhos manuais, seja numa ampla medida uma coisa cega; quanto ao operário plenamente qualificado, formado pela técnica dos tempos modernos, é, talvez, o que mais se parece com o trabalhador perfeito. Achamos diferenças análogas na ação coletiva; uma [fim da p. 287] equipe de trabalhadores na linha de montagem, vigiados por um contramestre é um triste espetáculo, enquanto é maravilhoso ver um punhado de operários de construção, todos parados diante de uma dificuldade, refletindo, cada um por seu lado, indicando vários meios de ação, e, depois, aplicando unanimemente o método concebido por um deles, o qual pode indiferentemente ter ou não ter uma autoridade oficial sobre os outros. Em tais momentos, a imagem duma coletividade livre surge quase pura. Quanto à relação entre a natureza do trabalho e a condição do trabalhador, ela é também evidente, assim que se olha para a história ou para a sociedade atual; mesmo os escravos antigos eram tratados com deferência, quando empregados como médicos ou pedagogos. Mas todas estas considerações se limitam ainda a detalhes. Um método que permitisse chegar a visões de conjunto a respeito das diversas organizações sociais em função de noções de servidão e de liberdade seria mais precioso.
Seria preciso, em primeiro lugar, fazer um levantamento, algo como um mapa da vida social, mapa no qual seriam indicados os pontos em que é indispensável que o pensamento se exerça, e, depois, por assim dizer, zonas de influência dos indivíduos sobre a sociedade. Podemos distinguir três maneiras pelas quais o pensamento pode intervir na vida social: pode elaborar especulações puramente teóricas, cujos resultados os técnicos aplicarão depois; pode exercer-se na realização; pode exercer-se no comando e na direção. Em todos os casos só se trata de um exercício parcial e, por assim dizer, mutilado do pensamento, já que o espírito nunca abraça em cheio o seu objeto; mas é o suficiente para que os que são obrigados a pensar quando cumprem sua função social conservem melhor do que os outros a forma humana. Isso não vale só para os oprimidos, mas para todos os graus da escala social. Numa sociedade fundada sobre a opressão, não só os fracos, mas também os mais poderosos que estão submetidos às exigências cegas da vida coletiva; e há um apoucamento do coração e do espírito tanto nuns como nos outros, embora de maneira diferente; ora, se opusermos duas camadas sociais opressivas, como, por exemplo, os cidadãos de Atenas e a burocracia soviética, encontramos uma distância pelo menos tão grande quanto entre um dos nossos operários qualificados e um escravo grego. Quanto às condições segundo as quais o pensamento participa mais ou menos do exercício do poder, seria fácil estabelecê-las, conforme o grau de complicação e de extensão das atividades, o caráter geral das dificuldades a resolver e a repartição das funções. Assim, os membros duma sociedade opressiva não se dis-[fim da p. 288] tinguem apenas conforme o lugar mais elevado ou mais baixo em que se encontram agarrados ao mecanismo social, mas também pelo caráter mais consciente ou mais passivo de suas relações com ele; e esta segunda distinção, mais importante que a primeira, não tem ligação direta com ela. Quanto à influência que os homens encarregados de funções submetidas à direção de sua própria inteligência podem exercer sobre a sociedade de que fazem parte, depende, é claro, da natureza e da importância dessas funções; seria muito interessante, mas também dificílimo, prosseguir a análise até as últimas conseqüências, quanto a este ponto. Um outro fator muito importante das relações entre a opressão social e os indivíduos é constituído pelas faculdades de controle mais ou menos extensas que homens que não estão investidos de autoridade podem exercer sobre as diversas funções que consistem essencialmente em coordenar; é claro que quanto mais essas funções escapam ao controle, tanto mais a vida coletiva é esmagadora para o conjunto dos indivíduos. É preciso, finalmente, considerar o caráter dos laços que mantêm o indivíduo na dependência material da sociedade que o rodeia; esses laços são ora mais frouxos, ora mais estreitos, e é possível encontrar diferenças consideráveis, conforme um homem for mais ou menos obrigado, a cada momento da sua existência, a voltar-se para outrem a fim de obter os meios de consumir, os meios de produzir e de preservar-se dos perigos. Por exemplo, um operário que possui um quintal grande o bastante para fornecer-lhe legumes é mais independente do que os seus companheiros que precisam procurar toda a sua alimentação nos comerciantes; um artesão que possui suas ferramentas é mais independente do que um operário de fábrica cujas mãos se tornam inúteis quando apraz ao patrão tirar-lhe o uso da máquina. Quanto à defesa contra os perigos, a situação do indivíduo a esse respeito depende da forma de combate que pratica a sociedade em que se encontra; onde o combate for o monopólio dos membros de uma certa camada social, a segurança de todos os outros depende desses privilegiados; onde o poder das armas e o caráter coletivo do combate derem o monopólio à força militar, ao poder central, este dispõe, à vontade, da segurança dos cidadãos. Em resumo, a sociedade menos ruim é aquela na qual o comum dos homens se acha o mais freqüentemente na obrigação de pensar agindo, tem as maiores possibilidades de controle do conjunto da vida coletiva e possui mais independência. De mais a mais, as condições necessárias para reduzir o peso opressivo do mecanismo social entram em choque assim que certos limites são ultrapassados; portanto, não se trata de caminhar o mais dis-[fim da p. 289]tante possível numa determinada direção, mas, o que é muito mais difícil, de encontrar um certo equilíbrio optimum.
O conceito puramente negativo de um enfraquecimento da opressão social não pode por si só dar um objetivo às pessoas de boa vontade. Ë indispensável que se faça pelo menos uma representação vaga da civilização que se deseja que a humanidade consiga; e pouco importa que essa representação tenha mais de simples sonho do que de verdadeiro pensamento. Se as análises precedentes estiverem corretas, a civilização mais plenamente humana seria a que tivesse como centro o trabalho manual, aquela na qual o trabalho manual fosse o valor supremo. Não é nada semelhante à religião da produção que reina na América durante o período da prosperidade, que reina na Rússia desde o plano qüinqüenal; pois essa religião tem por fim real os produtos do trabalho e não o trabalhador, as coisas e não o homem. Não é por sua relação com o que produz que o trabalho manual deve tornar-se o mais alto valor, mas por sua relação com o homem que o executa; ele não deve ser objeto de honrarias ou de recompensas, mas constituir para cada ser humano aquilo de que precisa essencialmente para que a sua vida adquira em si mesma um sentido e um valor a seus próprios olhos. Mesmo em nossos dias, as atividades que chamamos de desinteressadas, esporte, ou mesmo arte, ou mesmo pensamento, não conseguem, talvez, dar o equivalente do que sentimos quando nos pomos diretamente diante do mundo através de um trabalho não-maquinal. Rimbaud se queixava de que “nós não estamos no mundo” e de que “a verdadeira vida está ausente”; nesses momentos incomparáveis de alegria e de plenitude sabe-se por um átimo que a verdadeira vida está aí, experimenta-se em todo o ser que o mundo existe e que se está no mundo. Até o cansaço físico não consegue diminuir o poder deste sentimento, mas antes, enquanto não for excessivo, o aumenta. Se pode ser assim na nossa época, que maravilhosa plenitude de vida não poderíamos esperar de uma civilização na qual o trabalho fosse transformado tanto que pudesse exercer plenamente todas as faculdades, que constituísse o ato humano por excelência? Deveria, então, encontrar-se no próprio centro da cultura. Outrora a cultura era considerada por muitos como um fim em si, e nos nossos dias, os que vêem nela mais do que uma simples distração, procuram habitualmente um meio de evadir-se da vida real. Seu verdadeiro valor consistiria, ao contrário, em preparar para a vida real, em armar o homem para que ele pudesse entreter com este universo, que é a sua partilha, e com seus irmãos, cuja condição é idêntica à sua, relações dignas da grandeza humana. Hoje a ciência é [fim da p. 290] considerada por uns como um simples catálogo de receitas técnicas, por outros como um conjunto de puras especulações do espírito que se bastam a si mesmas; os primeiros fazem muito pouco caso do espírito, e os segundos, do mundo. O pensamento, evidentemente, é a suprema dignidade do homem; mas se exerce no vazio, e portanto só se exerce em aparência, quando não agarra seu objeto, que só pode ser o universo. Ora, o que proporciona às especulações abstratas dos cientistas essa relação como o universo o que lhes dá um valor concreto, é serem elas direta ou indiretamente aplicáveis. Em nossos dias, é verdade, essas aplicações são estranhas aos cientistas; os que elaboram ou estudam essas especulações fazem-no sem pensa em seu valor teórico. Pelo menos é assim na maioria das vezes. No dia em que for impossível compreender as noções científicas, mesmo as mais abstratas, sem se perceber claramente, ao mesmo tempo, sua relação com as possíveis aplicações, e igualmente impossível aplicar, mesmo indiretamente, essas noções sem conhecê-las e compreendê-las a fundo, a ciência se terá tornado concreta e o trabalho, consciente; e só então uma e outro terão pleno valor. Até lá, ciência e trabalho sempre terão algo de incompleto e desumano. Os que disseram até agora que as aplicações são o fim da ciência queriam dizer que a verdade não merece ser procurada e que só o êxito importa; mas poderíamos entendê-lo de outra forma: podemos imaginar uma ciência que propusesse como fim último aperfeiçoar a técnica, não tornando-a mais poderosa, mas simplesmente mais consciente e mais metódica. Além disso, o rendimento bem que poderia progredir ao mesmo tempo que a lucidez; “procurai primeiro o reino dos céus e todo o resto vos será dado por acréscimo”. Uma ciência como essa seria, em suma, um método para dominar a natureza, ou um catálogo das noções indispensáveis para se chegar a esse domínio, colocadas numa ordem que as tornasse transparentes para o espírito. Foi, sem dúvida, assim que Descartes concebeu a ciência. Quanto à arte dessa civilização, ela, cristalizaria nas obras a expressão do equilíbrio feliz entre o espírito e o corpo, entre o homem e o universo, que só pode existir em ato nas formas mais nobres do trabalho físico; aliás, mesmo no passado, as obras de arte mais puras sempre exprimiram o sentimento, ou, falando de forma mais exata, o pressentimento de um equilíbrio como esse. O esporte teria como fim essencial dar ao corpo humano essa flexibilidade, e, como diz Hegel, essa fluidez que o torna penetrável ao pensamento e permite que este entre diretamente em contato com as coisas. As relações sociais seriam diretamente moldadas na organização do trabalho; os homens se agrupariam em pequenas coletividades tra-[fim da p. 291]balhadoras, onde a cooperação seria a suprema lei, e cada um poderia compreender claramente e controlar a relação das regras às quais sua vida seria submetida junto com o interesse geral. E cada momento da existência traria a cada um a oportunidade de compreender e de sentir a que ponto todos os homens são profundamente um, já que têm todos para enfrentar as lutas uma mesma razão com obstáculos análogos; e todas as relações humanas, desde as mais superficiais até as mais ternas, teriam algo dessa fraternidade viril que une os companheiros de trabalho.
Sem dúvida, estamos na utopia. Mas descrever, mesmo sumariamente, um estado de coisas que seja melhor do que o que é, é sempre construir uma utopia; e, no entanto, nada há de mais necessário à vida do que essas descrições, contanto que sejam sempre ditadas pela razão. Todo o pensamento moderno desde o Renascimento está, aliás, impregnado de aspirações mais ou menos vagas dessa civilização utópica; já se pôde até acreditar por algum tempo que era aquela civilização que se formava e que entrávamos na época em que a geometria grega baixaria à terra. Descartes certamente acreditou nisso, assim como alguns de seus contemporâneos. De mais a mais, a noção do trabalho considerado como um valor humano é, sem dúvida, a única conquista espiritual que o pensamento fez desde o milagre grego; está, quem sabe, aí a única lacuna do ideal de vida humana que a Grécia elaborou, e que deixou atrás de si como uma herança imperecível. Bacon foi o primeiro que fez aparecer essa noção. Num rasgo de gênio, substituiu a antiga e desesperadora maldição do Gênese (que fazia surgir o mundo como um presídio, e o trabalho como a marca da escravidão e da abjeção dos homens) pelo verdadeiro código das relações do homem com o mundo: “O homem comanda a natureza obedecendo-lhe.” Esta fórmula tão simples viria a ser, sozinha, a Bíblia da nossa época. Basta para definir o verdadeiro trabalho, o que torna os homens livres, e isso na medida mesma em que é um ato de submissão consciente à necessidade. Depois de Descartes, os cientistas, progressivamente, tenderam a considerar a ciência pura como um fim em si; mas o ideal de uma vida consagrada a uma forma livre de trabalho físico começou, em compensação, a surgir para os escritores; e domina a obra-prima do poeta, geralmente considerado o mais aristocrático de todos, Goethe. Fausto, símbolo da alma humana na sua incansável perseguição do bem, abandona a pesquisa abstrata da verdade, que se tornara a seus olhos um jogo vazio e estéril; o amor só o leva a destruir o ser amado; o poder político e militar se revela um mero jogo de aparências; o encontro da beleza o satisfaz, mas [fim da p. 292] somente pela duração de um relâmpago; a situação de senhor lhe dá um poder que ele acha substancial, mas que, no entanto, o entrega à tirania das paixões. Por fim, ele deseja ser despojado de seu poder mágico, que se pode considerar o símbolo de toda espécie de poder; e exclama: “Se eu ficasse diante de ti, Natureza, só na minha qualidade de homem, valeria então a pena ser unia criatura humana”; e acaba por alcançar, no momento de morrer, o pressentimento da mais plena felicidade, imaginando para si uma vida que se escoaria livremente no meio de um povo livre, e que seria inteiramente ocupada por um trabalho físico penoso e perigoso, mas cumprido em meio a uma colaboração fraterna. Seria fácil citar ainda outros nomes ilustres, entre os quais Rousseau, Shelley e, sobretudo Tolstoi, que desenvolveu esse tema ao longo de toda a sua obra com um vigor incomparável. Quanto ao movimento operário, todas as vezes que soube fugir da demagogia, foi sobre a dignidade do trabalho que ele fundou as reivindicações dos trabalhadores. Proudhon ousava escrever: “O gênio do mais simples artesão supera tanto os materiais de que serve quanto o espírito de Newton supera as esferas inertes cujas distâncias, massas e revoluções ele calcula”; Marx, cuja obra contém muitas contradições, propunha como característica essencial do homem, em oposição aos animais, o fato de ele produzir as condições da sua própria existência e assim produzir-se indiretamente a si próprio. Os sindicalistas revolucionários que colocam no centro da questão social a dignidade do produtor considerado como tal, vinculam-se à mesa corrente. Em termos globais, podemos ter o orgulho de pertencer a uma civilização que trouxe consigo o pressentimento de um ideal novo.
Esboço da vida social contemporânea
Ê impossível imaginar seja o que for mais contrário a esse ideal do que a forma que a civilização moderna assumiu depois de uma evolução de vários séculos. Nunca o indivíduo esteve tão completamente entregue a uma coletividade cega, e nunca os homens foram mais incapazes, não só de submeter suas ações a seus pensamentos, mas até de pensar. As palavras opressores e oprimidos, a noção de classes, tudo isto está muito perto de perder toda significação, de tal modo são evidentes a impotência e a angústia de todos os homens diante da máquina social, que se transformou em uma máquina de partir os corações, de esmagar os espíritos, uma máquina de fabricar inconsciência, tolice, corrupção, desfibramento e sobretudo vertigem. A razão desse doloroso estado de coisas é bem clara. Vive-[fim da p. 293]mos num mundo onde nada está na medida do homem; há uma desproporção monstruosa entre o corpo do homem, o espírito do homem e as coisas que constituem atualmente os elementos da vida humana; tudo é desequilíbrio. Não existe categoria, grupo ou classe de homens que escape a esse desequilíbrio devorador, com exceção, talvez, de algumas ilhotas de vida mais primitiva; e os jovens que cresceram, que crescem dentro desse ambiente, refletem mais que os outros, no interior de si mesmos, o caos que os rodeia. Esse desequilíbrio é essencialmente uma questão de quantidade. A quantidade se tornou qualidade, como disse Hegel, e, particularmente, uma simples diferença de quantidade basta para se passar do terreno humano para o terreno desumano. Abstratamente, as quantidades são indiferentes, já que se pode trocar arbitrariamente a unidade de medida; mas concretamente, certas unidades de medida estão dadas e permaneceram invariáveis até agora, por exemplo, o corpo humano, a vida humana, o ano, o dia, a rapidez média do pensamento humano. A vida atual não está organizada na medida de todas estas coisas; ela se transportou para uma ordem de outra grandeza, bem diferente, como se o homem se esforçasse por elevá-la ao nível das forças da natureza exterior deixando de considerar sua própria natureza. Se acrescentarmos que, conforme as aparências, o regime econômico esgotou sua capacidade de construção e começa a não poder funcionar senão minando pouco a pouco suas bases materiais, perceberemos em toda a sua simplicidade a verdadeira essência da miséria infundada que constitui o quinhão das gerações presentes. Aparentemente quase tudo se cumpre metodicamente em nossos dias; a ciência é rainha, o maquinismo invade pouco a pouco todo o domínio do trabalho, as estatísticas adquirem uma importância crescente, e, numa sexta parte do globo, o poder central tenta regular o conjunto da vida social dentro de planos. Mas, na realidade, o espírito metódico vai desaparecendo progressivamente, porque o pensamento acha cada vez menos o que morder. Só a matemática constitui desde agora um conjunto vasto e complexo demais para que um espírito a abranja; quanto maior for o conjunto formado pela matemática e pelas ciências da natureza, tanto mais volumoso ainda é o conjunto formado pela ciência e por suas aplicações; por outro lado, tudo está ligado estreitamente, estreitamente demais para que o pensamento possa verdadeiramente apanhar noções parciais. Ora, tudo o que o individuo, impotente, não consegue dominar, a coletividade assalta. Assim é que a ciência, há bastante tempo já, e numa dimensão cada vez maior, é uma obra coletiva. Para dizer a verdade, os novos resultados são sempre, de fato, obra de determinados homens; mas, exceto talvez alguns casos raros, o [fim da p. 294] valor de qualquer resultado depende de um conjunto tão complexo de relações com as descobertas passadas e com as possíveis pesquisas que o próprio espírito do inventor não consegue abarcá-las. Assim, as luzes que se acumulam formam enigmas, à maneira de um vidro demasiado espesso que deixasse de ser transparente. Com mais forte razão, a vida prática vai adquirindo características cada vez mais coletivas, e o indivíduo como tal é cada vez mais insignificante dentro dela. Os progressos da técnica e a produção em série reduzem cada vez mais os operários a um papel passivo; com isso, numa proporção crescente e numa dimensão cada vez maior, eles chegam a uma forma de trabalho que lhes permite cumprir os gestos necessários sem entender a relação com o resultado final. Por outro lado, uma empresa se tornou uma coisa vasta e complexa demais para que um homem possa entendê-la plenamente; e, aliás, em todos os domínios, todos os homens que estão nos postos importantes da vida social estão encarregados de afazeres que ultrapassam consideravelmente o alcance de um espírito humano. Quanto ao conjunto da vida social, ele depende de tantos fatores, cada um dos quais impenetravelmente obscuro, misturando-se em relações inextrincáveis que ninguém teria sequer a idéia de procurar conceber-lhes o mecanismo. Assim, a função social mais essencialmente P próxima do indivíduo, a que consiste em coordenar, dirigir, decidir, ultrapassa as capacidades individuais, e se torna, numa certa medida, coletiva e como que anônima.
Na mesma medida em que o que há de sistemático na vida contemporânea escapa ao domínio do pensamento, a regularidade nele é estabelecida por coisas que são o equivalente do que seria o pensamento coletivo, se a coletividade pensasse. A coesão da ciência está garantida por signos; a saber, de um lado, por palavras ou expressões já feitas que são utilizadas além do que comportariam as noções que nelas estavam primitivamente encerradas, e de outro lado por cálculos algébricos. No domínio do trabalho, as coisas que assumem as funções essenciais são as máquinas. A coisa que relaciona produto e consumo, e que regula a troca dos produtos, é a moeda. Enfim, onde a função de coordenar e de dirigir é pesada demais para a inteligência e para o pensamento de um homem só, ela é confiada a uma máquina estranha, cujas peças são homens, onde as engrenagens são feitas por regulamentos, relatórios e estatísticas, e que se chama organização burocrática. Todas essas coisas cegas imitam, a ponto de iludir, o esforço do pensamento. O simples jogo do cálculo algébrico conseguiu mais de uma vez alcançar o que se poderia chamar de nova noção, com a diferença de que tais simili-noções não têm outro conteúdo senão o de relação de signos; esse [fim da p. 295]cálculo é muitas vezes maravilhosamente adequado para transformar séries de resultados experimentais em leis, com uma facilidade desconcertante que lembra as transformações fantásticas que vemos nos desenhos animados. As máquinas automáticas parecem apresentar o modelo do trabalhador inteligente, fiel, dócil e consciencioso. Quanto à moeda, os economistas por muito tempo estiveram persuadidos de que ela possui a virtude de estabelecer entre as diversas funções econômicas relações harmoniosas. E os mecanismos burocráticos conseguem quase substituir chefes. Assim, em todos os domínios, o pensamento, apanágio do individuo, está subordinado a imensos mecanismos que cristalizam a vida coletiva, a tal ponto que quase se perdeu o sentido do que é o verdadeiro pensamento. Os esforços, as lutas, as habilidades dos seres de carne e osso que o tempo vai trazendo, por ondas sucessivas, para a vida social só têm valor e eficácia sob a condição de virem por sua vez cristalizar-se nesses grandes mecanismos. A inversão da relação entre meios e fins, inversão que é em certa medida a lei de toda sociedade opressiva, torna-se aqui total, ou quase, e se estende a quase tudo. O cientista não apela para a ciência a fim de conseguir vigiar, com mais clareza, o seu próprio pensamento, mas aspira encontrar resultados que possam vir acrescentar-se à ciência constituída. As máquinas não funcionam para permitir que os homens vivam, mas nos resignamos a alimentar os homens a fim de que eles sirvam às máquinas. O dinheiro não é um processo cômodo para trocar os produtos; é o escoamento das mercadorias que é um meio de fazer o dinheiro circular. Enfim, a organização não é um meio de exercer uma atividade coletiva, mas a atividade de um grupo, seja qual for, é um meio de reforçar a organização. Um outro aspecto da mesma inversão consiste em que os signos, palavras e fórmulas algébricas no domínio do conhecimento, moedas e símbolos de crédito na vida econômica, exercem a função de realidades em relação às quais as coisas reais não passam de sombras, exatamente como no conto de Andersen, em que o sábio e sua sombra invertiam os papéis; é que os signos são a matéria das relações sociais, ao passo que a percepção da realidade é coisa individual. O despojamento do individuo a favor da coletividade, demais a mais, não é total, nem pode sê-lo; mas é difícil imaginar que possa ir além do que já foi. O poder e a concentração das armas põem todas as vidas humanas à mercê do poder central. Devido à extensão formidável das trocas, a maior parte dos homens n~o pode atingir a maior parte das coisas que consome a não ser por intermédio da sociedade e em troca de dinheiro; os próprios lavradores estão hoje submetidos em grande [fim da p. 296]
Quando o homem está submetido até a esse ponto, é impossível estabelecer juízo de valor, em qualquer plano que seja, a não ser por um critério puramente exterior; não há na linguagem um termo bastante estranho ao pensamento que exprima convenientemente algo tão desprovido de sentido; mas podemos dizer que esse critério se define pela eficácia, contanto que se entenda por isso êxitos conseguidos no vazio. Nem mesmo uma noção científica é apreciada pelo seu conteúdo, o qual pode ser inteiramente ininteligível, mas pelas facilidades que ela proporciona, de coordenar, abreviar, resumir. No domínio econômico, uma empresa é julgada, não pela utilidade real das funções sociais que preenche, mas pela extensão que tomou e pela rapidez com que se desenvolve; e assim funciona tudo. Quer dizer, o juízo dos valores é, de alguma forma, confiado às coisas e não ao pensamento. A eficácia dos esforços de toda espécie sempre deve, é verdade, ser controlada pelo pensamento, pois, de uma forma geral, todo controle procede do espírito; mas o pensamento está reduzido a um papel tão subalterno que podemos dizer, para simplificar, que a função de controlar passou do pensamento para as coisas. Mas essa complicação exorbitante de todas as atividades teóricas e práticas, que destronou assim o pensamento, chega, por sua vez, quando se agrava mais, a tornar esse controle exercido pelas coisas defeituoso e quase impossível. Tudo é cego então. Foi assim que, no domínio da ciência, a desmesurada acumulação dos materiais de toda espécie resultou em um caos tal que está próximo o momento em que todo o sistema parecerá arbitrário. O caos da vida econômica ainda é muito mais evidente. Na própria execu-[fim da p. 297]ção do trabalho, a subordinação de escravos irresponsáveis a chefes esmagados pela quantidade de coisas a vigiar, e, aliás, eles também em grande parte irresponsáveis, são causa de defeitos e de inúmeras negligências; esse mal, a principio limitado às grandes empresas industriais, estendeu-se aos campos, onde os camponeses são submetidos à maneira dos operários, isto é, na Rússia soviética. A extensão formidável do crédito impede que a moeda exerça seu papel regulador nas trocas e no relacionamento dos diversos ramos da produção; seria em vão tentar remediar isso a golpes de estatística. A extensão paralela da especulação consegue tornar a prosperidade das empresas independente, em grande escala, de seu bom funcionamento; isso porque os recursos trazidos pela produção de cada uma delas contam cada vez menos ao lado do ingresso contínuo de capital novo. Em resumo, em todos os setores, o sucesso se tornou algo quase arbitrário; cada vez mais ele vem aparecendo como obra do mero acaso; e como era a única lei em todos os ramos da atividade humana, nossa civilização está sendo continuamente invadida por uma desordem crescente, e arruinada por um esbanjamento proporcional à desordem. Essa transformação se dá no momento em que as fontes de lucro, das quais a economia capitalista tirou outrora seu prodigioso desenvolvimento, se estão tornando cada vez menos abundantes, quando as mesmas condições técnicas do trabalho impõem ao progresso do equipamento industrial um ritmo rapidamente decrescente.
Tantas mudanças profundas se deram quase sem que as percebêssemos, e, no entanto, vivemos um período em que o eixo do sistema social está, por assim dizer, em mudança. No decorrer do desenvolvimento do regime industrial, a vida social esteve orientada no sentido da construção. O equipamento industrial do planeta era por excelência o terreno onde se travava a luta pelo poder. Fazer crescer uma empresa mais depressa do que suas rivais, e isso por seus próprios recursos, este era, em geral, o fim da atividade econômica. A poupança era a lei da vida econômica, restringia-se ao máximo o consumo não só dos operários, mas também dos capitalistas, e, de uma forma geral todos os gastos tendiam para algo diverso do equipamento industrial. Os governos tinham antes de mais nada como missão preservar a paz civil e internacional. Os burgueses tinham o sentido de que seria assim indefinidamente, para a maior felicidade da humanidade, mas não podia ser assim indefinidamente. Em nossos dias, a luta pelo poder, conservando até certo ponto a aparência das mesmas formas, mudou completamente de natureza. O aumento formidável da parte que o capital material [fim da p. 298] tem nas empresas, se o compararmos ao trabalho vivo, à diminuição rápida da taxa de lucro que dai resultou, à massa continuamente crescente de despesas gerais, ao esbanjamento, ao prejuízo, à.falta de qualquer elemento regulador que permitisse ajustar os diversos ramos de produção, tudo impede que a atividade social ainda possa ter como pivô o desenvolvimento da empresa por meio da transformaçãO do lucro em capital. Parece que a luta econômica deixou de ser uma rivalidade para ser uma espécie de guerra. Não se trata mais de organizar bem o trabalho, mas de arrancar a maior quantidade possível do dinheiro disperso por todos os lados com o escoamento dos produtos; tudo se joga no domínio da opinião e quase da ficção, em golpes de especulação e de publicidade. O crédito está na chave de qualquer êxito econômico, a poupança é substituída pelos gastos mais loucos. A palavra propriedade se tornou quase vazia de sentido; não se trata mais, para o ambicioso, de fazer prosperar um negócio do qual ele seria o proprietário, mas de passar para o seu controle o setor mais amplo possível da atividade econômica. Numa palavra, para caracterizar de maneira, aliás, vaga e sumária, esta transformação de uma obscuridade quase impenetrável, trata-se, agora, na luta pelo poder econômico, muito menos de construir do que de conquistar; e como a conquista é destruidora, o sistema capitalista, embora sendo aparentemente o mesmo de há cinqüenta anos atrás, se orienta inteiramente no sentido da destruição. Os meios de luta econômica, publicidade, luxo, corrupção, investimentos formidáveis baseados quase inteiramente no crédito, escoamento de produtos inúteis por processos quase violentos, especulações destinadas a arruinar as empresas rivais, todos tendem a minar as bases de nossa vida econômica, muito mais do que a ampliá-las. Mas tudo isso é pouco ao lado de dois fenômenos conexos que começam a aparecer com clareza e a fazer pesar sobre a vida de cada um uma trágica ameaça; a saber, por um lado o Estado tendendo cada vez mais, e com uma extraordinária rapidez, a tornar-se o centro de vida econômica e social, e, por outro lado, a subordinação do econômico ao militar. Se tentarmos analisar os fenômenos em detalhe, teremos de parar por causa de um enredamento quase inextricável de causas e efeitos recíprocos; mas a tendência geral é bem clara. Ê bastante natural que o caráter crescente-mente burocrático da atividade econômica favoreça os progressos do poder do Estado, que é a organização burocrática por excelência. A transformação profunda da luta econômica se exerce no mesmo sentido; o Estado é incapaz de construir, mas, pelo fato de concentrar em suas mãos os meios de pressão mais poderosos, é levado, num certo sentido por se~i próprio peso, a tornar-se pouco a pouco [fim da p. 299]o elemento central onde quer que se trate de conquistar e de destruir. Enfim, dado que a extraordinária complicação das operações de troca e de crédito impede, a partir de então, que a moeda possa bastar para coordenar a vida econômica, é preciso que uma aparência de coordenação burocrática seja instalada; e a organização burocrática central, que é o aparelho do Estado, deve naturalmente ser levada, cedo ou tarde, à posição de mão forte nessa coordenação, O pivô em torno do qual a vida social gira assim transformada não é outro senão a preparação para a guerra. Desde que a luta pelo poder se opera pela conquista e pela destruição, em outras palavras, por uma guerra econômica difusa, como estranhar que a guerra propriamente dita ascenda ao primeiro plano? E como a guerra é a forma própria da luta pelo poder, quando os competidores são Estados, todo progresso na invasão do Estado na vida econômica tem como conseqüência a orientação da vida industrial numa dimensão ainda maior no sentido da preparação para a guerra; enquanto isso, em compensação, as exigências continuamente crescentes da preparação para a guerra contribuem para submeter dia a dia, cada vez mais, o conjunto das atividades econômicas e sociais de cada pais à autoridade do poder central. Vê-se claramente que a humanidade contemporânea tende um pouco, por toda a parte, a uma forma totalitária de organização social, para usarmos a palavra que os nacional-socialistas puseram em moda, isto é, a um regime no qual o poder do Estado decide soberanamente sobre todos os domínios, até, e sobretudo, sobre o domínio do pensamento. A Rússia fornece um exemplo quase perfeito desse regime, para grande infelicidade do povo russo; os outros países só se poderão aproximar dela se passarem por comoções análogas à de outubro de 1917, mas parece inevitável que todos se aproximem mais ou menos dela durante os anos que vêm. Essa evolução só dará uma forma burocrática à desordem, e aumentará ainda a incoerência, o esbanjamento, a miséria. As guerras trarão um consumo insensato de matérias-primas e de materiais, uma louca destruição dos bens de toda espécie legados pelas gerações precedentes. Quando o caos e a destruição tiverem atingido o limite, a partir do qual o próprio funcionamento da organização econômica e social se tiver tornado materialmente impossível, nossa civilização perecerá; e a humanidade, voltando para um nível de vida mais ou menos primitivo e para uma vida social dispersa em coletividades muito menores, partirá para um novo caminho que não nos é possível prever.
Imaginar que podemos orientar a história numa direção diferente transformando o regime com golpes de reformas ou de revoluções, esperar a salvação de uma ação defensiva ou ofensiva contra [fim da p. 300] a tirania e o militarismo, é sonhar acordado. Não há nada sobre o quê apoiar-se, nem mesmo simples tentativas. A fórmula de Marx segundo a qual o regime geraria seus próprios coveiros vê cada dia cruéis desmentidos; e, aliás, nos perguntamos como pôde Marx crer um dia que a escravidão pudesse formar homens livres. Nunca aconteceu na história cair um regime de escravidão sob os golpes dos escravos. A verdade é, que, conforme uma fórmula célebre, a escravidão avilta o homem até se tornar amada; que a liberdade só é preciosa aos olhos dos que a têm efetivamente; e que um regime inteiramente desumano, como é o nosso, em vez de forjar seres capazes de edificar uma sociedade humana, modela à sua imagem todos os que lhe são submissos, tanto oprimidos quanto opressores. Por toda a parte, em graus diferentes, a impossibilidade de relacionar o que damos com o que recebemos aniquilou o sentido do trabalho bem feito, o sentimento de responsabilidade, suscitou a passividade, o abandono, o hábito de esperar tudo de fora, a crença nos milagres. Mesmo na lavoura, o sentimento de um laço profundo entre a terra que alimenta o homem e o homem que trabalha a terra se apagou em grande escala desde que o gosto da especulação, as variações imprevisíveis das moedas e dos preços habituaram os lavradores a voltar os olhos para o lado da cidade. O operário não tem consciência de ganhar a sua vida apresentando-se na qualidade de produtor; simplesmente, a empresa o escraviza cada dia durante longas horas, e lhe concede cada semana uma soma de dinheiro que lhe dá o poder mágico de suscitar num instante produtos já fabricados, exatamente como fazem os ricos. A presença de inumeráveis grevistas, a cruel necessidade de mendigar um lugar, fazem do salário menos um salário do que uma esmola. Quanto aos grevistas em si, podem ser parasitas involuntários, aliás miseráveis, mas não deixam de ser parasitas. De uma forma geral, a relação entre o trabalho fornecido e o dinheiro recebido é tão difícil de captar que ela aparece como quase contingente, de forma que o trabalho parece escravidão e o dinheiro um favor. Os meios que chamamos dirigentes são atingidos pela mesma passividade que todos os outros, porque, transbordados como estão por um oceano de problemas inextricáveis, renunciaram há muito a dirigir. Procuraríamos em vão, de alto a baixo na escala social, um auxílio de homens em que pudesse um dia germinar a idéia de que, em caso de necessidade, poderiam vir a tomar nas mãos os destinos da sociedade; as declamações dos fascistas poderiam, por si, produzir ilusões a este respeito, mas são ocas. Como sempre acontece, a confusão mental e a passividade deixam livre curso à imaginação. Por todos os lados se está obcecado por uma representação da vida social, que, diferindo considera-[fim da p. 301]velmente de um meio para outro, é sempre feita de mistérios, de qualidades ocultas, de mitos, de ídolos, de monstros; cada um acha que o poder reside misteriosamente em um dos meios aos quais não tem acesso, porque quase ninguém compreende que ele não está em nenhum lugar, de forma que por toda a parte o sentimento dominante é esse medo vertiginoso que produz sempre a perda do contato com a realidade. Cada meio aparece de fora como um objeto de pesadelo. Nos meios que se ligam ao movimento operário, os sonhos são perseguidos por monstros mitológicos que têm por nome Finança, Indústria, Bolsa, Banco e outros; os burgueses sonham com outros monstros, que se chamam cabeças, agitadores, demagogos; os políticos consideram os capitalistas seres sobrenaturais que são os únicos a possuírem as chaves da situação, e vice-versa; cada povo considera os povos vizinhos monstros coletivos animados de uma perversidade diabólica. Poderíamos desenvolver esse tema até o infinito. Numa situação como essa, qualquer nulidade pode ser olhada como um rei e durar certo tempo só por causa dessa crença; e não é só para os homens comuns que isto vale, mas também para os meios dirigentes. Nada é, igualmente, mais fácil do que espalhar um mito qualquer através de toda uma população. Não nos devemos, então, espantar com a aparição de regimes “totalitários” sem precedentes na história. Diz-se muitas vezes que a força não pode domar o pensamento; mas para que isto seja verdade, é preciso que haja pensamento. Onde as opiniões irracionais tomam o lugar de idéias, a força pode tudo. Ê injusto dizer, por exemplo, que o fascismo anula o pensamento livre; na verdade, é a ausência de pensamento livre que torna possível impor pela força doutrinas oficiais inteiramente sem significado. Para dizer a verdade, um regime como este consegue ainda aumentar consideravelmente a estupidez geral, e há pouca esperança para as gerações que tiverem crescido dentro das condições que ele propicia. Em nossos dias toda tentativa para embrutecer os seres humanos encontra à sua disposição meios poderosos. Em compensação, uma coisa é impossível, mesmo que dispuséssemos da melhor tribuna, ou seja, difundir largamente idéias claras, raciocínios corretos, pontos de vista razoáveis.
Dos homens, nenhum socorro a esperar; caso fosse de outra forma, os homens não seriam vencidos de antemão pelo poder das coisas. A sociedade atual não fornece outros meios de ação senão máquinas de esmagar a humanidade; sejam quais forem as intenções dos que as tomam nas mãos, essas máquinas esmagam e, enquanto existirem, esmagarão. Com as prisões industriais que são as grandes fábricas só se podem fabricar escravos, e não trabalhadores [fim da p. 302] livres, muito menos trabalhadores que formariam uma classe dominante. Com canhões, aviões, bombas, pode-se espalhar a morte, o terror, a opressão, mas não a vida e a liberdade. Com máscaras de gás, abrigos, sinais de alerta, podem-se forjar miseráveis rebanhos de seres enlouquecidos, prestes a ceder aos terrores mais insensatos e a acolher com reconhecimento as mais humilhantes tiranias, mas não cidadãos. Com a grande imprensa e o rádio podemos fazer todo um povo engolir juntamente com o café da manhã ou a refeição da noite, opiniões convencionais, e por isso mesmo absurdas, pois até as visões razoáveis se deformam e se tornam falsas no espírito que as recebe sem reflexão; mas não se pode com essas coisas suscitar nenhuma centelha de pensamento. E sem fábricas, sem armas, sem grande imprensa, não se pode nada contra os que possuem tudo isso. Assim se passa com tudo. Os meios poderosos são opressivos, os meios fracos são inoperantes. Todas as vezes que os oprimidos quiseram formar agrupamentos capazes de exercer uma real influência, esses agrupamentos, tenham tido o nome de partidos ou de sindicatos, reproduziram integralmente em seu seio todas as taras do regime que pretendiam reformar ou abater, a saber, a organização burocrática, a inversão da relação entre os meios e os fins, o desprezo pelo indivíduo, a separação entre o pensamento e a ação, o caráter maquinal do próprio pensamento, a utilização do embrutecimento e da mentira como meios de propaganda, e assim por diante. A única possibilidade de salvação estaria numa cooperação metódica de todos, fortes e fracos, aspirando a uma descentralização progressiva da vida social; mas o absurdo de uma idéia como essa salta imediatamente aos olhos. Impossível imaginar tal cooperação mesmo em sonho, dentro de uma civilização que se apóia na rivalidade, na luta, na guerra. Fora dessa cooperação é impossível deter a tendência cega da máquina social em direção a uma crescente centralização até o momento em que a própria máquina se enrosque brutalmente e voe em pedaços. O que podem pesar os desejos e votos dos que não estão nos postos de comandos, quando, reduzidos à mais trágica das impotências, são simples joguetes de forças cegas e brutais? Quanto aos que possuem um poder econômico ou político, eles espicaçados como andam de forma contínua pelas ambições rivais e pelos poderes hostis, não podem trabalhar para enfraquecer seu próprio poder sem se condenar quase inevitavelmente a se verem despojados dele. Quanto mais tenham sido animados de boas intenções, tanto mais serão levados, mesmo a contragosto, a tentar estender seu poder para estender sua capacidade de fazer o bem; o que vem de novo a se oprimir na esperança de libertar, tal como fez Lênin. Ë evidentemente impossível que a des-[fim da p. 303]centralização parta do poder central; na mesma medida em que o poder central se exerce, ele subordina a si todo o resto. De maneira geral, a idéia do despotismo esclarecido, que sempre teve um caráter utópico é, em nossos dias, totalmente absurda. Em face de problemas cuja variedade e complexidade ultrapassam infinitamente seja os grandes seja os pequenos espíritos, nenhum déspota no mundo pode ser esclarecido. Se alguns homens podem esperar, à custa de reflexões honestas e metódicas, perceber alguma luz nessa escuridão impenetrável, não é, certamente, o caso daqueles a quem as preocupações e as responsabilidades do poder privam, ao mesmo tempo, de lazer e de liberdade de espírito. Em tal situação, o que podem fazer os que ainda se obstinam, remando contra a maré, em respeitar a dignidade humana, em si mesmos e nos outros? Nada, a não ser esforçar-se por abrir um pouco de folga nas engrenagens da máquina que nos esmaga; agarrar todas as oportunidades para acordar um pouco o pensamento por a toda parte em que puderem; favorecer tudo o que é suscetível, no setor da política, da economia ou da técnica, de deixar aqui e ali ao individuo uma certa liberdade de movimentos no interior dos laços com que a organização social o rodeia. Já é alguma coisa, é claro, mas não vai muito longe. Em termos globais, a situação em que estamos é bem parecida com a de viajantes totalmente ignorantes que se encontrassem num automóvel lançado a toda velocidade e sem condutor num terreno acidentado. Quando se produzirá a brecha pela qual poderemos tentar construir algo de novo? E uma questão de algumas dezenas de anos, talvez de séculos. Nenhum indício permite que se determine um prazo provável. Parece, no entanto, que os recursos materiais de nossa civilização não correm o risco de se esgotarem antes de um tempo bastante longo, mesmo se contando com as guerras; e, por outro lado, como a centralização, abolindo toda iniciativa individual e toda vida local, destrói, por sua própria existência, tudo quanto poderia servir de base para uma organização diferente, podemos supor que o atual sistema subsistirá até o extremo limite das suas possibilidades. Em suma, parece sensato pensar que as gerações que vão estar em presença das dificuldades suscitadas pelo esboroamento do atual regime, ainda estão por nascer. Quanto às gerações atualmente vivas, são, talvez, de todas as que se sucederam no decorrer da história humana, as que tiveram que suportar o maior número de responsabilidades imaginárias, e o menor número de responsabilidades reais. Esta situação, uma vez plenamente compreendida, deixa uma liberdade de espírito maravilhosa. [fim da p. 304]
Conclusão
Exatamente, o que é que vai perecer e o que é que vai subsistir da civilização atual? Em que condições, em que sentido a história transcorrerá a seguir? Essas questões são insolúveis, O que sabemos de antemão, é que a vida será tanto menos desumana quanto maior for a capacidade individual de pensar e de agir. A civilização atual, da qual nossos descendentes recolherão, sem dúvida, pelo menos alguns fragmentos como herança, contém em si, e o sentimos demais, o poder de esmagar o homem; mas ela contém, também, pelo menos em germe, o poder de libertá-lo. Há, na nossa ciência, apesar de todas as obscuridades trazidas por uma espécie de nova escolástica, fulgores admiráveis, partes límpidas e luminosas, iniciativas perfeitamente metódicas do espírito. Também na nossa técnica, há germes de liberação do trabalho. Sem dúvida, não como se julga comumente, pelo lado das máquinas automáticas; essas, vê-se claramente, são próprias, do ponto de vista puramente técnico, para aliviar os homens daquilo que o trabalho pode conter de maquinal e inconsciente, mas, em compensação, estão indissoluvelmente ligadas a uma organização da economia centralizada em excesso, e, conseqüentemente, muito opressiva. Mas, outras formas da máquina-ferramenta criaram, sobretudo antes da guerra, talvez, o mais belo tipo de trabalhador consciente que jamais surgiu na história, isto é, o operário qualificado. Se, durante os últimos vinte anos, a máquina-ferramenta tomou formas cada vez mais automáticas, se o trabalho realizado até em máquinas de modelo relativamente antigo se tornou cada vez mais maquinal, a causa é a concentração crescente da economia. Quem sabe se uma indústria dispersa em inúmeras pequenas empresas não suscitaria uma evolução inversa à da máquina-ferramenta, e, paralelamente, formas de trabalho que pedissem muito mais consciência e engenhosidade do que o trabalho mais qualificado das fábricas modernas? Tanto mais nos é permitido esperar, quanto a eletricidade fornece a forma de energia que conviria a uma organização industrial como essa. Visto que a nossa impossibilidade quase completa em relação aos males presentes, uma vez claramente compreendida, nos dispensa pelo menos de nos preocuparmos com a atualidade salvo nos momentos em que somos diretamente atingidos, que tarefa mais nobre poderíamos assumir do que a de preparar metodicamente um futuro como esse, trabalhando para fazer o inventário da civilização presente? E realmente uma tarefa que ultrapassa, de longe, as possibilidades tão restritas de uma vida humana; e, além de tudo, orientar-se por semelhante [fim da p. 305] caminho é condenar-se com certeza à solidão moral, à incompreensão, à hostilidade seja dos inimigos da ordem existente, seja dos seus servidores; quanto às gerações futuras, nada permite supor que o acaso possa fazer chegarem até a elas, através das catástrofes que nos separam delas, os fragmentos de idéias que alguns espíritos solitários poderiam elaborar em nossos dias. Mas, seria insensato queixar-se de uma situação como essa. Nunca houve pacto algum com a Providência que prometesse eficácia aos esforços, nem aos mais generosos. E, quando alguém resolveu, por si mesmo e no seu âmbito de ação, confiar apenas em esforços que tivessem sua fonte e princípio no pensamento daquele que os cumpre, seria ridículo desejar que uma operação mágica permitisse obter grandes resultados com as forças ínfimas de que os indivíduos isolados dispõem. Não é com semelhantes raciocínios que uma alma firme pode jamas deixar-se desviar, quando percebe claramente uma coisa a fazer, e uma só. Tratar-se-ia, portanto, de separar, na civilização atual, o que pertence de direito ao homem considerado enquanto indivíduo e o que é de tal natureza que possa fornecer à coletividade armas contra ele, procurando os meios de desenvolvimento os primeiros elementos em detrimento dos segundos. No que diz respeito à ciência, não é preciso tentar acrescentar nada ao acervo já grande demais que a compõe; é preciso fazer seu balanço para permitir que o espírito traga à luz o que lhe pertence propriamente, o que é feito de noções claras, e pôr de lado o que é somente processo automático para coordenar, unificar, resumir, ou mesmo descobrir; é preciso tentar reduzir esses processos em si mesmos a iniciativas conscientes do espírito; é preciso, de uma forma geral, onde seja possível, conceber e apresentar os resultados como um simples momento na atividade metódica do pensamento. Para isso, um estudo sério da história das ciências é sem dúvida indispensável. Quanto à técnica, seria preciso estudá-la de uma forma aprofundada, em sua história, em seu estado atual, em suas possibilidades de desenvolvimento, e sob um ponto de vista totalmente novo, que não seria mais o do rendimento, mas o da relação do trabalhador com o seu trabalho. Enfim, seria preciso pôr em plena luz a analogia entre os passos que o pensamento humano dá, de um lado, na vida quotidiana e especialmente no trabalho, e, do outro lado, na elaboração metódica de ciência. Mesmo que uma seqüência de reflexões assim orientadas devesse ficar sem influência na evolução posterior da organização social não perderia por isso seu valor; os destinos futuros da humanidade não são o único objeto a merecer consideração. Só fanáticos podem valorizar da própria existência só o tanto que sirva a uma causa coletiva; reagir contra a subordinação do indivíduo à coletividade [fim da p. 306] ca começar recusando a subordinação de seu próprio destino ao curso da história. Para decidir-se por semelhante esforço de análise crítica, basta compreender que ele permitirá a quem o empreender, fugir do contágio da loucura e da vertigem coletiva, reatando, por conta própria, por cima do ídolo social, o pacto original do espírito com o universo.

(De Oppression et Liberté)

[fim da p. 307]

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