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quinta-feira, março 04, 2010

A sociologia moral de Luc Boltanski

BLIC, Damien de. (2000). La sociologia politique et morale de Luc Boltanski. Toulouse, Raison politique, n. 3, p.149-158.

De Blic (2000) discutindo os trabalhos de Boltanski …

O primeiro objeto mais amplo sobre o qual ele vai sistematicamente por à prova esta preocupação é, classicamente, a sociologia de um grupo social: les cadres (os quadros). Ao se ater a uma sociologia dos quadros, o pesquisador é submetido a uma tensão: como levar em conta esta categoria sem naturalizá-la? Como escapar à tentação de hipostasiar tudo enquanto se mede a pregnância social desta figura: ‘de que ciência autônoma se pode se valer da autoridade para contestar a realidade de um princípio de identidade ao qual os agentes sociais concedem sua fé?” se pergunta Boltanski na introdução de seu trabalho. A questão se dirige então para a história da categoria, como testemunhando o título de seu trabalho (a formação de um grupo social), e deve remontar até os anos 1930, época na qual emergem em certos atores a preocupação de promover um movimento das classes médias destinado a romper tanto com a ordem social binária própria ao capitalismo quanto com as reivindicações do mundo do trabalho. O autor mostra então, como, no pré-guerra, a categoria se inscreveu duravelmente no mundo social se apoiando ao mesmo tempo em dispositivos técnicos (representações estatísticas, sistema de fundos de pensão…) e sobre a colocação de esquemas cognitivos. Resulta de certa exploração histórica que o trabalho de construção da categoria ‘quadros’ pode bem ser definida como um trabalho político do qual se pode seguir o desenvolvimento histórico, ligado a certas mobilizações, e que repousa sobre a ação de atores identificáveis (sindicatos de classes médias, portadores da modernização econômica…). É, a partir de agora, uma sociologia da ação política que se coloca e os quadros mostram como esta ação repousa largamente sobre uma capacidade dos atores para universalisar as propriedades locais.
A freqüência deste terreno vem trazer, ao mesmo tempo, vencer estas distâncias com uma sociologia que não lhe permite considerar as pretensões de justiça dos atores (suas formas de denúncia das injustiças pelas quais eles se consideram vítimas) que ele reencontra, nem da capacidade que eles têm de se abstraírem de seus casos particulares para chegar a formas gerais (das quais a categoria “quadros” é um exemplo). Para compreender estas competências de generalização, se impõe a necessidade de constituir sistematicamente uma sociologia da “forma [fim da p. 150] caso”, forma que se pode definir numa primeira aproximação como uma disputa no curso da qual os protagonistas “se dedicam a um intenso trabalho interpretativo e argumentativo, se opõem a um conflito de argumentação” e onde “cada parte procura mobilizar o maior número de recursos em seu favor”. Repousando sobre a questão dos “casos”, o sociólogo pode, de uma forma privilegiada, examinar as operações de generalização que estão sendo feitas (DE BLIC, 2000).
Entretanto, Luc Boltanski traz para as argumentações empregadas nas disputas as similitudes perturbadoras com as demonstrações sociológicas, sobretudo quando estas últimas visam um alcance crítico. Logo porque a retomada, a utilização generalizada de argumentos sociológicos pelas pessoas engajadas nas disputas é uma constante de casos contemporâneos. Por outro lado, porque o ‘relato’ produzido pela sociologia, que reivindica portanto uma ruptura nas ilusões do senso comum, não é diferente de outros relatos, estes produzidos pelos atores engajados nas disputas ordinárias: pretensão à validade dos argumentos, apoiados em um sistema de provas, seleções de fatos pertinentes, operações de desvendamento... Esta constatação estabelece, desvio impossível de manter “uma distância radical entre a atividade denunciatória das pessoas e a atividade científica dos sociólogos” e elucidar uma reflexão sobre a posição implícita que supõe o exercício de uma sociologia crítica. Se uma sociologia pode reivindicar uma visão crítica (entendida aqui como a possibilidade de um julgamento a partir de uma posição de exterioridade), é que ela tem a ver com a questão da justiça: se se tem por finalidade revelar as formas de dominação implicadas nas desigualdades na repartição dos bens materiais e imateriais, é que se dispõe de um modelo alternativo de distribuição desses bens. Mas esta sociologia não desvenda jamais seus próprios apoios normativos e não definido que por falha sua concepção de justiça. Ao endurecer a oposição weberiana entre julgamento de fato e julgamento de valor, em oposição à realidade desvendada pela ciência e aos motivos explícitos dos atores, considerados como as racionalizações a posteriori, a sociologia crítica negligencia as operações críticas efetuadas pelos próprios atores. Esta forma de [fim da p. 151] cegueira é particularmente lamentável, pois ela impede a boa compreensão dos aspectos de uma sociedade crítica, “dentro daquelas operações de crítica e operações de justificação, necessárias para responder à crítica ou para preveni-la, intervir constantemente” (DE BLIC, 2000).
Para fazer uma sociologia realista da sociedade crítica, é conveniente desde que suspenda a pretensão ao monopólio da crítica social válida que reivindica a sociologia crítica. Ao fazer do “caso” um conceito sociológico, o sociólogo se dá como objetivo reconhecer as restrições que pesam sobre os atores engajados nestas situações, quer seja sociólogos ou simples ‘quidams’ (?). Por em dia estas constantes deve permitir não somente dar conta do caso local – que foi o principal protagonista um quadro vítima de uma baixa – como o “grande” caso – onde a figura típica é evidentemente o caso Dreyfus – mas sobretudo de compreender o que vai favorecer ou não o êxito de mobilizações ou a constituição de “causas” que tornam possível a passagem de uma à outra. Notemos que a suspensão da sociologia crítica não significa a impossibilidade de uma contribuição da sociologia à crítica social. Ela consiste simplesmente dar sua dignidade às outras formas de críticas, aquelas que são empregadas pelas pessoas no curso ordinário da vida social.
É no artigo intitulado “A denúncia” que Luc Boltanski esboça uma primeira formalização das restrições aos quais os atores devem se submeter para suas operações de generalização. “A denúncia” visa explorar, novamente, a questão da construção do coletivo, mas desta vez sobre a contribuição das “causas” a este trabalho social. Lembremos que esta pesquisa visa inicialmente compreender as condições de receptibilidade de uma denúncia pública. O terreno é constituído por um corpo amplo de cartas endereçadas ao jornal Le Monde, estas cartas têm juntas o objetivo de denunciar injustiças, destinadas à serem publicadas pelo diário. A análise do material mostra primeiramente que toda denúncia faz intervir quatro tipos de protagonista: o denunciante de injustiça, a vítima (em favor da qual a denúncia é acompanhada), o opressor (autor da injustiça denunciada) e o juiz (junto ao qual a denúncia é operada). A partir deste esquema, Boltanski pode ligar o sucesso [fim da p. 152] ou o fracasso da denúncia (medida por sua capacidade de suscitar uma mobilização ou, mais simplesmente, as ser julgada receptível) à noção de corte, noção essencial que constitui um eixo em torno do qual vai se construir toda a sociologia que se segue. Com efeito, a regra gramatical que emerge graças ao trabalho de codificação das cartas é a seguinte: para que a queixa seja julgada válida, é preciso que os quatro agentes marcados sejam de cortes equivalentes. Se o denunciante se queixa junto à opinião pública, ele mesmo é a vítima que se defende não devendo aparecer como indivíduos singulares defendendo seus interesses particulares, mas como representantes de um coletivo. O limite ao qual se submete o denunciante é, portanto, aquele de uma dessingularização de seu caso. Dessingularizar significa então operar uma conexão entre um caso singular e os equivalentes coletivos. “Para engrandecer a vítima, é preciso ligá-la a um coletivo, ou seja, neste caso, conectar seu caso a uma causa constituída e reconhecida”. Boltanski mostra então que uma sanção intervem, sob a forma de um julgamento de anormalidade, quando o trabalho de dessingularização não é realizado de forma adequada, notadamente quando “o autor é ameno e o faz sozinho, contando com seus próprios meios, as manobras que devem ser acompanhadas por estes coletivos por serem reconhecidos como aceitáveis”. Vejamos como o trabalho sobre a denúncia se liga às pesquisas anteriores, porque a operação de dessingularização da vítima consiste em sua inclusão em uma categoria, a forma à qual o indivíduo se defende pode ser substituída não importa que outro membro da categoria (imigrante, mulher, trabalhador…). Ora a possibilidade de dividir os indivíduos em classes diferentes exige um trabalho coletivo, porque é “a referência a um interesse geral e o estabelecimento de princípios de equivalência [que permitem] reunir em uma mesma categoria os indivíduos distanciados em um espaço geográfico e no espaço social”. Como para o trabalho de constituição de uma categoria quadros, é sempre a questão de se operar a passagem entre as propriedades locais e as categorias universais. “A denúncia” marca portanto uma ruptura epistemológica: não, desta vez, de uma perspectiva clássica de um corte com o senso comum, mas comparada com as práticas rotineiras da sociologia, que não intervêm uma vez sequer na separação do singular e do geral a ser operado pelos atores. Com este primeiro modelo, o sociólogo opera, mais, uma conexão entre os problemas da construção do coletivo, a questão da grandeza e da equivalência e aquela das exigências da justiça [fim da p.153].
O modelo proposto por Luc Boltanski em “A denúncia” é enriquecido e completado pelos trabalhos seguintes, inicialmente na direção de um pluralismo das formas de generalidade, depois pelo esboço de uma teoria geral dos regimes de ação. Da justificação, trabalho coescrito com Laurent Théveniot, tem como objeto as situações nas quais as pessoas exercem a crítica e/ou estão à procura de um acordo legítimo, a noção de legitimidade renovada aqui por uma validade potencialmente universal do princípio de justiça posto em ação, que vai permitir uma justa repartição dos bens materiais e imateriais em função do corte das pessoas implicadas no acordo. “A denúncia” mostra os atores pretendendo uma grandeza, o acesso à grandeza torna-se possível por um trabalho de dessingularização. Da justificação recupera esta noção de grandeza, mostrando que existe de fato no mundo social diferentes formas de ser grande. Dizer que o eixo singular/geral não é único significa que os princípios de equivalência que permitem o ordenamento das pessoas são múltiplos. Estes princípios de ordenamento vão tomar nos modelos desenvolvido em A justificação o nome de cidade. Estas cidades não são em quantidade infinita, porque, para ser legítima, um ordem deve obedecer a uma série de restrição, e notadamente responder a uma exigência de ‘humanidade comum’. Se uma cidade permite ordenar as pessoas em torno de um bem comum, ela deve supor também que os estados de grandeza não são vinculados de uma vez por todas às pessoas, a grandeza atual de uma pessoa deve ser medida por um exame . A originalidade do percurso está sobre o uso da modelização das diferentes cidades, das obras clássicos da filosofia política cujos autores (Rousseau, Smith, Saint-Simon, Bossuet, Saint Augustin, Hobbes) são cada um afirmam, em um momento dado e de forma sistemática, um princípio que pode servir de base a uma ordem justa, e podem ser considerados por esta razão como os gramáticos de vínculo político (o termo ‘gramática’ volta aqui para o todo das regras a seguir por [fim da p. 154] este acordo seja durável). Luc Boltanski e Laurent Thévenot atribuem dessa forma à Saint-Simon a primeira exposição sistemática das condições de viabilidade de uma ordem social justa, fundada sobre as formas de organização inspiradas em um modelo industrial. Com estes trabalhos, os pesquisadores dispõem de um repertório bastante completo das ‘formas de bem comum às quais é correntemente feitas referências hoje em nossa sociedade’. Mas se estas cidades modelam os princípios de equivalência, elas não são suficientes para dar conta da forma cujos atores entram em acordo efetivamente.na medida onde as disputas toma lugar nas situações concretas, elas vão dar lugar, como se assinalou, a estas provas de realidade, onde a pretensão das pessoas deve poder ser reportadas ao mundo dos objetos, aos dispositivos e aos sistemas de provas. A missão conferida ao sociólogo no modelo consiste, portanto, a marcar as restrições argumentativos que pesam sobre as pessoas engajadas nas disputas e esclarecer a forma pela qual os argumentos podem ser relacionados aos princípios de justiça, em outros termos, “remontar a cadeira de argumentos até que os enunciados de generalidade surjam”. Levando a sério a capacidade dos atores de produzir os argumentos gerais e legítimos, e tentando levar em conta as restrições que os personagens devem ter em conta, em uma situação dada, para tornar sua crítica ou sua justificação aceitáveis pelos outros, esta sociologia visa portanto bem trazer a “causa da crítica”.
É necessário precisar, por outro lado, que o modelo construído em A justificação não objetiva levar em conta os cortes das situações que podem ser recorrentes no mundo social, mas somente daquelas onde os atores procuram produzir em conjunto os acordos legítimos. Como vimos, as pessoas engajadas neste tipo de situações são submissas a um certo número de restrições, e devem estar de acordo para regular a disputa colocando em ação os princípios de equivalência. O trabalho de Boltanski intitulado “Amour et la Justice comme compétences” propõe dessa forma um modelo dos regimes de ação que vão caracterizare os diferentes estados dos relatos entre as pessoas, de um lado, e entre as pessoas e as coisas, de outro. O modelo dos regimes de ação seria incompleto se não levasse em conta as situações onde as disputas não vão ser reguladas pela implementação dos princípios de equivalência. Em Boltanski, a justiça não pode ser reduzida a um simples resultado de força: quando as forças não estão restritas por provas legítimas, seu [fim da p. 155] ‘desencadeamento’ impede de distinguir entre as pessoas e as coisas, e não é possível falar de acordo, nem de legitimidade. Este puro resultado de força caracteriza bem, por outro lado, um regime de violência .
É levando em conta estes diferentes regimes de ação, e a possibilidade que as pessoas têm de mudar de um a outro, que Luc Boltanski pretende se dar meus meios de uma descrição realista do mundo social. Uma contribuição do modelo para a sociologia está assim contida na idéia de que nem tudo é devido à força, mas de levar à sério as competências críticas das pessoas e sua capacidade de conciliar também conforme os princípios da justiça.
É ainda a crítica que está no centro do seu último trabalho, escrito em colacoração com Eve Ch8iapello. Le nouvel esprit du captalisme tem como objeto as mudanças normativas que acompanham as transformações recentes do capitalismo. Que melhor demonstração da ‘força da crítica’ que mostrar sua capacidade de forçá-la até o capital? O capitalismo deve com efeito ter em conta, depois do século XIX, uma crítica que lhe seja destinada sob a dupla forma de uma crítica ‘artística’ e uma crítica ‘social’ . Mas, se existe uma força da crítica, aquela do capitalismo é de saber buscar apoio sobre a crítica, integrar até obter um recurso para um crescente engajamento nele, e trazer assim os novos caminhos do lucro. Neste sentido, este que se convencionou chamar depois de mais de vinte anos a ‘crise’ não deve ser compreendido como uma crise do capital, no qual tudo mostra que se porta bem, mas como uma crise da crítica, face desarmada à integração pelo capitalismo de seus próprios argumentos, notadamente no período pós-68. Para colocar em evidência esta inscrição da crítica no ‘espírito’ novo do capitalismo, os dois autores se apóiam sobre um estudo meticuloso de textos de administração correntes depois dos anos 1960. explorando cronologicamente esta literatura, se pode medir a disparidade progressiva [fim da p. 156] de toda referência à cidade ‘doméstica’ como princípio da ordem na empresa, enquanto cresce no poder da figura do administrador, cuja a grandeza se mede por sua capacidade de se integrar nas redes, de investirem em um projeto e se desligar quando o mesmo for concluído. A pesquisa se inscreve bem, portanto, na continuidade de uma sociologia da crítica. Mas é interessante notar que o livro assume ao mesmo tempo uma visão crítica, como testemunho do último capítulo que procura definir as condições de uma crítica renovada do capitalismo, tendo em conta o ‘novo espírito’ e, portanto, mais eficaz.
Não se está propondo na introdução a este texto mostrar como o trabalho de Luc Boltanski renova a questão da análise sociológica da política . Ao término desta rápida apresentação e com o auxílio da palestra que segue, como compreender este termo de política em Boltanski? Compreende-se bem como a sociologia de Boltanski pode se afirmar como uma sociologia moral, na medida em que a pretensão à justiça dos atores não seja reduzida a um jogo de interesses e onde a moral não seja assimilável ao simples efeito de restrições estruturais. Ora, este termo de moral jamais é dissociado, na reflexão de Boltanski, daquele da política . Tentou-se mostrar que este último conceito não voltou, aqui, nem por puro e simples exercício de poder, nem por uma esfera autônoma da ação política, concebida como dissociada do social. A originalidade da abordagem de Boltanski consiste de fato em definir a política como a operação que permite a passagem das partes ao todo. Esta compreensão da política supõe portanto a aceitação de um modelo ontológico em dois níveis, que opõe o plano dos casos individuais àquele das categorias universais. Os atores descritos por Boltanski são dessa forma dotados de uma competência metafísica, neste senso que são todos potencialmente aceitos no plano das categorias. O ‘caso’ constitui, dessa forma, bem a forma política por excelência, na medida em que onde ela representa um momento central pela construção das categorias, através da constituição das causas, e porque é a ocasião de uma implementação das formas de generalidade já estabelecidas. É um trabalho político do mesmo tipo que é descrito desde Les Cadres até ao Nouvel esprit du capitalisme, que os autores lutam por impor uma nova taxonomia social ou que tentam impor uma nova cidade que pode servir de ponto de apoio para o julgamento e a ação. Classificação, categorização, dessingularização, generalização: em que se ligam a estas operações, é bem uma sociologia política do começo ao fim que constrói Luc Boltanski.

Um comentário:

  1. Cristina,
    podemos dizer que Bauman e Sennett fazem uma espécie de sociologia da moral (não necessariamente igual a dos pragmatistas franceses), ao abordarem temas como a relação "caráter-mundo do trabalho" e "vida líquida-(pós)modernidade"?

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O Ex-librista se destina a discussões literárias e de assuntos das ciências humanas.